domingo, 4 de setembro de 2022

Os Filhos de Alcoolismo

Com o passar desses mais de 10 anos em que trabalho com dependência química, algo que nunca me passou despercebido foi a relação que o meu paciente tinha com o seu pai. Afinal, me parece, que a dependência química é uma história de amor com o pai. Essa relação tão marcada por amor e por ódio. Sim, onde há muito ódio, há muito amor também!
Na prática clínica é perceptível a referencia de idolatria que o meu paciente tem para com a mãe - em torno dela é construído um santuário, uma imagem idealizada dos acertos e por uma suposta razão. E quanto ao pai o que aparece é um desprezo fixado em mágoas e fortes ressentimentos.
Nem tão ao céu, nem tão ao inferno. É preciso equilibrar essas relações. Já que para alcançar a maturidade emocional de um adulto, o necessário é reconhecer a figura importante de ambos. E também a consciência de que cada um fez aquilo que lhe era possível ser feito. O treino deve ser de reconhecimento e perdão.
Os estudos da teoria Winnicottiana é baseada com o bebê no colo de sua mãe. Esse bebê com uma tendência para o amadurecimento, mas ainda assim, mesmo essa tendência sendo inata, há a necessidade em se contar com um ambiente que propicie esse processo.
Winnicott também considerou de forma importante o pai, pontuando e descrevendo seu papel em todas as etapa do processo de amadurecimento pessoal.
 
Obs: Mantêm-se a premissa de que a mãe é o primeiro ambiente do bebê e esta precisa oferecer um colo suficientemente bom, mas entende-se que a qualidade deste colo dependerá fundamentalmente do "colo" oferecido para a ela. Este, que se dá de forma muito mais adequada, quando oferecido pelo pai da criança. Então, o pai é o responsável por ser o holding da mãe. Possibilitando a ela uma total dedicação para com o lactante, ela podendo ser uma mãe devotada.
 
Nos primeiros meses de vida (chamado por Winnicott de fase de dependência absoluta), o pai atua de forma a substituir a mãe diante de uma necessidade, oferece ao bebê os mesmo cuidados que a mãe lhe dispensa.
Em “Da Pediatria à Psicanálise”, Winnicott escreveu que é fundamental que o pai seja verdadeiramente importante para a mãe, num sentido dramático e existencial, permitindo o estabelecimento de uma relação mãe-filho saudável. Deste modo, o bebê poderá integrar-se com auxílio da presença paterna. O pai não “duplica” o cuidado materno, mas aparece como elemento inscrito num processo de diferenciação da alteridade.
Isso numa família saudável...
 

Agora, pense em uma mãe de primeira viagem, com o seu bebê recém nascido, com todas as demandas dela (alterações físicas, hormonais, emocionais...), mais todas as demandas do bebê, e mais ainda preocupada que o pai da criança não chegou em casa depois do trabalho, imaginando que ele deve estar no bar com os amigos, gastando o dinheiro reservado para as contas do mês. Ou ainda a preocupação de que quando ele chegar estará alcoolizado.
Não sei se é de seu conhecimento, se você já viu um bêbedo...
Normalmente um homem sob efeito do álcool fica expansivo, dono da verdade, cheio de razão, chato e por muitas vezes agressivo.
Esse bebê, em simbiose com a mãe, sentirá toda essa ansiedade, bem como irá vivenciar junto dela a expectativa e o caos causado com a chegada desse pai.
Percebe que a função do pai em substituir a mãe já esta fadada ao fracasso? Pois a mãe, com razão, não confia que esse homem seja capaz de ser suficientemente bom nos cuidados para com o seu bebê. Aqui há uma fixação da simbiose. Pois o corte que seria necessário que o pai fizesse, já não vai acontecer. Por falha de ambos! Incapacidade dele e medo dela.
O pai não transmitirá a segurança necessária, não fará o holding para a mãe. A mãe tentará substituí-lo.
Esse bebê não terá um ambiente bom para desenvolver sua segurança interna. Ouso dizer, que aqui está um dos maiores prejuízos que os filhos do alcoolismo sofrem: Passam a ser pessoas sem o mínimo de segurança possível para seu amadurecimento emocional. São bebês e posteriormente adultos inseguros. Tem medo da vida! Não consegue sentir segurança no ambiente, no mundo lá fora e muito menos no seu mundo interno. Aqui, possivelmente, está a base da ansiedade, da depressão e até mesmo de um possível desenvolvimento da dependência química.
Pode-se dizer, que as marcas emocionais permanecerão por toda a vida. Esse bebê se tornará um adulto que não conseguirá confiar em ninguém, muito menos em si mesmo. Trará consigo a incerteza, que virá a provocar persistente angústia; sentimento de impotência diante das situações cotidianas; baixa autoestima; sentimento de culpa (o pai alcoolista muitas vezes culpa os filhos pelo caos familiar, e eles acabam introjetando esse sentimento); herdará também dificuldade em expressar afetos; falta de perspectiva de futuro...
 
Quando se trata de um segundo momento (que Winnicott chamou de dependência relativa), num ambiente familiar saudável, o principal papel desempenhado pelo pai é a de chamar a mãe para si. Ela estava distante dela mesma, física e emocionalmente, distante do marido, da casa e de todas as outras relações. O pai é quem “lembra” a mãe que ela também é uma mulher, de modo que ela tenha mais um ponto de apoio para recuperar aspectos de sua personalidade e de retomar, aos poucos, a amplitude do mundo que havia sido estreitado pela preocupação materna primária.
 
* Importante ressaltar que a entrada do pai na vida da criança não é violenta ou traumática, e nada tem a ver com qualquer situação em que esteja implicada uma separação brusca da mãe. As mudanças vão ocorrendo dentro da relação mãe-bebê, na natureza desta relação, e não a partir da dissolução dela. O pai aqui não é o interditor, ao contrário, ele é o sustentador, para que o amadurecimento natural possa ir ocorrendo.
 
No ambiente familiar alcoolista, a relação simbiótica permanece, pois o pai não entra. Essa adoração para com a mãe impede que a criança venha a se desenvolver de forma saudável. Grande parte dos dependentes químicos são uns “bebezões”. Homem adulto por fora, mas emocionalmente imaturo. Incapaz de cuidar de sua própria vida sozinho.
Na dependência química, a ‘química’ é o menor dos detalhes. As relações de ‘dependência’ é o maior agravante deste tipo de personalidade. É dependente emocionalmente, financeiramente e tem muita dificuldade para resolver sozinho os problemas da vida. É a mãe quem o leva procurar emprego, quem paga suas contas e compra suas roupas. É a mãe que tenta incansavelmente resolver seus problemas. Ela quem escolhe as parceiras, mesmo achando que mulher nenhuma é boa o suficiente para o seu “bebê”. Homem que depende da mãe e que posteriormente buscará uma mulher para substituir essa função materna.
 
Também na fase da dependência relativa é responsabilidade do pai posicionar-se de modo a proteger a mãe dos ataques da criança, já que nesta etapa a criança se depara com o processo de desilusão. É nesta fase que o bebê vê o primeiro sinal do pai, ainda através da mãe. O pai é o primeiro modelo de integração para o bebê, assim é usado por ele como um padrão para sua própria integração.
No livro “O ambiente e os processos de maturação” Winnicott diz: “...o pai pode ser o primeiro vislumbre que a criança tem da integração e da pessoalidade total. O bebê utiliza o pai como uma espécie de diagrama para a sua própria integração, num momento em que esta integração ainda não foi conquistada por ele.”
Quando se trata de um pai saudável, é lindo falar de integração.
Quando se trata de um pai alcoolista, estamos falando de uma repetição de comportamentos negativos.
Os filhos de alcoolistas tem 6 vezes mais chances de desenvolver uma dependência (dependência química, de jogos, sexo, compulsão alimentar). 6x mais chance do que filhos de pai não alcoolista! Além de apresentarem mais frequentemente sintomas psicopatológicos desde a infância. Tem mais disfunções cognitivos, problemas de aprendizagem, precocemente sintomas de ansiedade, depressão...
 
Como o quadro de alcoolismo é crônico e as manifestações de violência física e psicológica costumam ser persistentes e ir se acentuando. Com a repetição, fica quase impossível curar as feridas naturalmente. E elas vão formando a personalidade de uma pessoa instável emocionalmente; alimenta comportamentos impulsivos e compulsivos; é uma pessoa que tem dificuldade de terminar os projetos que inicia – abandona escola, cursos, trabalhos...; é uma pessoa que encara as coisas com um excesso de seriedade, tendo problemas para reservar momentos para a diversão e o prazer – e o álcool e as drogas chegam aqui para tentar alcançar esse prazer faltante, vem como entretenimento e anestesia.
 
Considero importante também citar as possíveis consequências destas falhas no que diz respeito à sociedade. Tendo em vista, que o papel do pai é de referência hierárquica, de colocar limites, preparar o filho para as relações interpessoais, e consequentemente para a convivência em sociedade. Aparece aqui o deprivado, das condutas delinquentes e da tendência antissocial.
 
Em processo de psicoterapia, é comum para o filho de alcoolista se deparar com a repetição dos comportamentos que tanto ele abomina no pai. Ele vai se perceber negligenciando ou até mesmo abandonando os filhos, não prestando cuidados para eles e para a esposa. Perceberá praticando violência física e psíquica, igualzinho como recebeu. Irá se perceber sendo um péssimo modelo de homem.
Para que os filhos do alcoolismo possam superar essa marca emocional e curar as feridas deixadas pela relação com o pai, precisará entender ‘o que’ o trouxe até o presente momento. Essa percepção, somada a outros insigths, pode favorecer a motivação para a mudança. Quebrar esse ciclo de repetição, que já era do avô, do pai... e ele optar por não querer reproduzir no seu filho. Isso passa a ser parte do desejo de alguém que procura mudança de vida.
 
Não fique sozinho! Peça ajuda!
 
* As palavras que destaquei em itálico são comuns na linguagem da psicanálise winnicottiana. Se não conseguir compreender, me disponho a te ajudar. Pode me chamar
 
Abraço,
 
Micheli Krayevski Eckel
Psicóloga
Psicanalista em construção
(47) 99193-6553 

terça-feira, 24 de maio de 2022

Erros que os Pais cometem com filhos Adolescentes


Ser pai/mãe de adolescentes é sempre um desafio. Para educar é preciso tolerância, paciência, esforço, bom senso e ser bom exemplo. Até porque diferente das crianças, os adolescentes sempre, eu disse SEMPRE, irão nos questionar como pais.

É importante lembrar que nessa fase da vida, as pessoas estão decidindo o que querem ser, não só profissionalmente, mas também como ser humano. É preciso evitar ao máximo tanto a indulgência quanto a rigidez para que os adolescentes possam se sentir seguros.

 

Sei que nós pais, queremos que nossos filhos não sintam nenhum tipo de desconforto ou sofrimento. Mas para o processo de amadurecimento, ambos são indispensáveis. Afinal, você não estará para sempre ao seu lado para o proteger e defender. Não poderá evitar as suas dores para sempre. E a vida adulta é cheia de obstáculos e os filhos devem estar preparados para enfrentá-los. Ensine seus filhos a enfrentar desafios e se defenderem sozinhos.

 

Obviamente, não existem pais perfeitos – não existe ninguém perfeito! Mas tem alguns erros que percebo em minha prática clinica com adolescentes que considerei relevante descrever para alertar os pais.

Seguem os principais erros que observo em pais de adolescentes:

 

Erro 1- Os filhos que são o centro do universo

Sei que para a maioria dos pais, seus filhos são a coisa mais importante da sua vida. E não tem problema demonstrar seu amor a eles, pelo contrario, expressar o seu amor é fundamental. No entanto, uma pessoa que, mais do que amada, é praticamente idolatrada cresce pensando que o mundo gira ao seu redor.

Ame o tanto que você puder e como quiser, mas evite que sejam criados na base do egoísmo e da superioridade. Assim, você os ajudará a ter uma autoestima sólida, mas com os pés no chão.

Outro fator importante na questão de autoestima, é que você é modelo de comportamento para seus filhos. Então, você precisa ensiná-lo que primeiro eu ME AMO e depois transfiro esse amor para os outros. Eu preciso ser a pessoa mais importante da minha vida. (veja mais sobre isso no Erro 6)

 

Erro 2 - Meus filhos são perfeitos

O ideal que você vê em seus filhos não existe!

Receba abertamente as opiniões das outras pessoas que convivem com seus filhos. Professores, amigos, outros familiares podem te trazer aspectos de seus filhos que talvez você não esteja enxergando.

O melhor que você pode fazer pelos seus filhos é os escutar atentamente e observar seus comportamentos, sem o filtro do amor cego. Eles estão construindo sua identidade. Assim, ainda há tempo para ajudá-los a corrigir alguns comportamentos.

 

Erro 3 - Viver através dos filhos

Os filhos não são extensões dos seus sonhos e das suas expectativas. Eles têm suas próprias vidas, metas, desejos e aspirações. Não o pressione a ser quem você gostaria de ser.

As atividades que eles realizam devem estar alinhadas em busca da sua própria felicidade, e não para a satisfação dos pais. Os filhos adolescentes não são segundas oportunidades para os pais. Eles são seres autônomos que devem trilhar o próprio caminho.

 

Erro 4 - Pai/Mãe como melhor amigo

Um dos grandes problemas da sociedade atual é que muitos pais não se comportam como pais, querem ser amigos. O desejo de receber amor e aceitação por parte dos filhos faz com que o papel de pai e mãe acabe se confundindo.

Tenha consciência que é normal que seus filhos às vezes fiquem bravos com você e não estejam de acordo com as suas decisões. A permissividade deve ser evitada ao máximo se você quer ensinar respeito e limites aos seus filhos.

Pense comigo: amigos seus filhos podem encontrar aos montes por ai. Pai/Mãe ele só tem você. E ele precisa que você exerça essa função para que ele possa amadurecer e se desenvolver um adulto saudável.

 

Erro 5 - Perder tempo em família

Não há nada mais enriquecedor para uma família que passar tempo de qualidade juntos. Embora os horários de trabalho e escola, o cansaço e as tarefas domésticas dificultem, sempre é preciso encontrar uma maneira de se encontrar e estar por perto.

Seja uma refeição que todos se sentam à mesa (sem celulares), um passeio que fazem juntos, ver um filme, algum jogo... cada família precisa encontrar sua atividade para passar um bom tempo juntos.

A parte boa de seus filhos serem adolescentes é todo o caminho que já percorreram para chegar até essa fase. Um pai ou uma mãe presente é o melhor presente que você pode oferecer aos seus filhos.

 

Erro 6 - Esquecer da importância do bom exemplo

Os pais têm a difícil tarefa de ser o exemplo das atitudes que exigem dos filhos. Se você quer que seu filho seja a melhor versão de si mesmo, esse é o momento para você também começar a ser. Eles te observam permanentemente e aprendem com tudo que você faz.

Palavras convencem e exemplos arrastam!

 

Erro 7 - Evitar que passem por adversidades

Para que seus filhos tenham confiança, resiliência e persistência, ele precisa superar seus próprios desafios. Cada dificuldade superada na vida diária agrega valores na vida da pessoa. A satisfação de se sentir capaz e independente, fará com que a criança ou o adolescente se torne um adulto forte e amadurecido.

 

No longo caminho de educar nos deparamos com grandes desafios. Embora não exista uma única maneira de fazer as coisas, evitar esses erros vai levar você por um caminho mais seguro. 

A adolescência é uma das fases mais bonitas e difíceis das suas vidas. Acompanhe seu filho, esteja a uma distancia segura, o autorize a crescer.

 

Dica: Frente a dúvidas e dificuldades, primeiramente olhe para dentro de si e confie nos valores que você quer transmitir para seu filho. Se não encontrar respostas convincentes, procure ajuda profissional.

 

Abraço

Micheli Krayevski Eckel

Psicóloga

 

segunda-feira, 11 de abril de 2022

Abandono Materno e as Consequências na Vida Adulta

Sentir a presença da mãe, seu calor, seu olhar e carinho ao chegar ao mundo, é uma das maiores necessidades que um ser humano sente ao longo de sua vida. Emocionalmente falando, não haverá coisa que precisaremos mais. Nos primeiros momentos de nossas vidas, nós somos uno com ela e posteriormente, quando a reconhecemos como um outro, somos capazes de aceitar tudo que ela nos faz. Se nos critica duramente ou se nos despreza, somos capazes de perdoá-la em um piscar de olhos. Na verdade, nem nos atrevemos a questionar o que nos fez, mas nos culpamos por tê-la irritado, chateado ou a deixado triste. Afinal, o que mais tememos é que ela nos abandone.

Por mais disponível que uma mãe seja, às vezes ela tem que se ausentar. Pouco a pouco aprendemos a lidar com essas breves ausências, mesmo que a contra gosto. Se por algum motivo nossa mãe se ausenta por maior parte do tempo, se abre uma ferida difícil de cicatrizar. E quando a mãe está totalmente ausente, principalmente nos primeiros anos de vida, o dano emocional é tão grande que deixa uma marca definitiva.


A criança não tem escapatória, se não conta com uma mãe suficientemente boa, irá construir sequelas dessa relação.

Comumente essas pessoas são encantadoras, muito agradáveis e de fácil trato. Aprenderam que devem “se comportar bem” e ser o que os outros esperam, para que assim, não sejam novamente abandonadas. 

Há pessoas que chegam à vida adulta se sentindo aterrorizadas nas situações em que precisam ficar sozinhas. Quando não há ninguém em casa, por exemplo, um poço de angústia é aberto dentro delas, no qual se sentem afogados. São como crianças aterrorizadas que sucumbem ao medo e a solidão.

A ausência da mãe também pode estar relacionada a origem de muitos distúrbios de sono e da alimentação. Talvez a mãe quisesse que seu bebê comesse e dormisse, e o manipulava sem prover sua presença completa. Aí que o comer demais, ou não comer, bem como o não dormir, às vezes, pode se tornar uma maneira de contrariá-la, de cobrar uma dívida. Embora quem acabe pagando essa conta, seja a própria pessoa.

Uma mãe que se ausenta frequentemente e por longos períodos pode induzir um forte estado de ansiedade no seu filho. Há medo quando sai, mas também há medo quando volta, porque a criança não sabe quando sairá novamente. Há mães que ainda utilizam esse terrível medo para “controlar” seus filhos – ameaça abandoná-lo quando não obedecem. Essa ausência não constrói o carinho e desorganiza as emoções. No final, a saída é bloquear os sentimentos amorosos. Às vezes, cultiva um ódio por ter sido submetido a esse círculo vicioso fatal de querer e perder, de novo e de novo.

Uma mãe ausente pode dar origem a seres humanos distantes, embotados, bravos e tristes. Seus filhos aprendem, pouco a pouco que precisam lidar com o mundo sozinhos. Então, para sobreviver a essa situação, que as crianças sentem como muito perigosa, às vezes colocam máscaras: o simpático, o obediente, o insensível, o agressivo... Quando adultos, essas pessoas terão dificuldade em reconhecer o que há por trás dessa máscara que inventaram para lidar com o abandono.

O que é perdido com uma mãe que abandona é a confiança nos outros. Também a esperança de que alguém possa responder às necessidades ou até mesmo nos amar. A partir disso, na vida adulta, amamos tentando criar laços de dependência, que falham repetidamente. O que uma mãe ausente deixa é um ser humano que aprende a estabelecer vínculos de insegurança, desconfiança e, sobre tudo, ansiedade. 

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Sobre ter (e ser) Mãe

A antiga bênção de Nahualt tem um trecho que diz assim: “Eu liberto meus pais do sentimento de que já falharam comigo”. Penso nas inúmeras vezes que julguei as “faltas” de minha mãe, mesmo quando o erro nem era dela. Talvez pela minha necessidade de achar um bode expiatório para os meus problemas, traumas, angustias e aflições, o caminho mais simples e seguro sempre foi acusar a pessoa que mais fácil me perdoaria: minha mãe.

Após um processo caminhado, hoje, definitivamente, quero libertar minha mãe do sentimento de qualquer culpa. Quero que ela saiba que mesmo que eu discorde de algumas atitudes tomadas no passado, sei que ela fez o que julgou que seria o melhor naquele momento. Tenho a plena convicção de que ela deu o seu melhor. Desejo que ela se sinta leve, sem arrependimentos ou culpas, e que perceba o quanto serviu de base e exemplo para nossa família. Quero que minha mãe saiba que reconheço o seu esforço. Que saiba o quanto sou grata e o quanto aceito os caminhos que trilhou com o intuito de que fôssemos felizes.

Conhecendo minha mãe, sendo mãe e ouvindo muitas mães em minha prática clínica, entendi que mãe falha tentando fazer o melhor e sempre por amor. Mãe falha pela ausência, tentando passar um exemplo de independência, de trabalho, para dar uma condição financeira melhor da que teve. Mãe falha pela presença, tentando ser apoio, companhia e até monitoramento estressante. Falha privando e frustrando; falha mimando e cuidando. Falha em defesa de seus filhos; falha tentando ser sensata e imparcial. Mãe falha sofrendo as nossas dores; falha ignorando os sinais, que na maioria das vezes todos em volta já estão enxergando. Falha suportando tudo, colocando tudo pra debaixo do tapete; falha também rodando a baiana e colocando os pingos nos is. Porém, o que mãe não faz, é desistir. Mesmo falhando, ela está ali, tentando, tentando, tentando... E mesmo errando, continua tentando acertar.

Crescemos, estudamos, adquirimos novos hábitos e costumes, e percebemos que nem tudo foi perfeito na casa onde nascemos. Ficamos críticos, passamos a discordar da educação que tivemos e tentamos agir de outro modo com nossos filhos. Porém, também passamos a repetir aquilo que foi bom. Sem querer, nos flagramos repetindo falas e trejeitos de nossos pais, repetindo brincadeiras, receitas, tentando eternizar tradições familiares.

Hoje, meu desejo é perpetuar o amor de minha mãe por suas filhas e a sua perseverança de tentar. Desejo que, ao entrar em casa, eu esqueça o peso do meu dia e possa ser leve e presente na companhia de minha filha. Que eu possa inspirá-la a fazer o bem, ser forte e paciente, mas acima de tudo, que ela entenda meu desejo de que seja mais amorosa consigo mesma. Que eu consiga acertar mais que errar, mas que ela perdoe minhas faltas, entendendo que sou aprendiz, e sempre desejo o seu bem. Que minha força de minha mãe se faça presente em alguns de meus pensamentos e gestos, me ajudando a repetir e aperfeiçoar a expressão do amor. E que, ao entregar minha filha para o mundo, eu possa confiar no tempo que passamos juntas e acreditar, com satisfação, que ela estará segura e em paz. E que ao ver minha filha voltar, espero enxergar em seus olhos o brilho de quem encontrou seu caminho, ou pelo menos está tentando.

Bem na verdade o que as mães querem é que seus filhos amadureçam, enfrentem a vida com dignidade e principalmente que seus filhos sejam felizes!


Micheli Krayevski Eckel

 

terça-feira, 31 de agosto de 2021

Prevenção à Condutas Antissociais na Primeira Infância

É sabido o quanto acontecimentos na infância influenciam na caracterização de nossa personalidade. Fatos traumáticos, violência familiar, bullying escolar, entre outros, acabam por desencadear comportamentos disruptivos. Esses comportamentos que por muitas vezes passam a ser punidos e vem junto um discurso moralista por parte dos adultos ao seu entorno, mas na realidade não passam de um grito de socorro! É um sinalizador de que há algo falho emocionalmente nessa criança e que ela precisa de um ambiente suficientemente bom pra lhe dar suporte.

Como trabalho com dependência química, por inúmeras vezes as escolas, empresas e outras instituições me chamam para fazer prevenção ao uso de drogas, mas isso não é possível. Não existe palestra no mundo que vá fazer alguém não vir a desenvolver a desvinça e a dependência química. A ação que funciona seria habilitar as famílias, em especial as mães, a fornecerem um ambiente saudável para o bebê desde o seu nascimento.

Há mães que, por algum motivo, não cumprem satisfatoriamente as funções de uma mãe suficientemente boa. Realizam uma maternagem deficiente, que pode conduzir ao surgimento de um sintoma ao longo do processo de amadurecimento. Embora a preocupação materna primária seja um estado psicológico naturalmente desenvolvido com a vinda de um bebê, existem mulheres que resistem em assumir esse papel. Dedicada a outras atividades, algumas mulheres não conseguem e não permitem uma identificação, uma ligação com seu bebê. Muitas irão realizar uma maternagem rígida e guiada por regras racionalmente estabe­lecidas. Vindas de livros sobre educação, algum site de conselhos ou mesmo o que uma amiga lhe ensinou. Assim, possivelmente irá conseguir prover para o seu bebê alguns cuidados básicos, mas essa mãe não será capaz de desenvolver uma comunicação profunda e significativa com seu filho. O bebê não terá suas demandas identificadas e atendidas, pois a mãe que age mecanicamente, não pensa nas necessidades do bebê, mas naquilo que precisa ser feito, como um protocolo determinado por ela mesma, que envolve basicamente alimentação e higiene.

Certamente haverá déficit no amadurecimento quando existir falhas no processo de desenvolvimento da criança. O déficit está vinculado diretamente ao momento em que as falhas ocorreram na linha de evolução, que parte do estágio de depen­dência absoluta, passando pela dependência relativa e rumo à independência relativa.

Alguns sintomas podem estar relacionados com falhas no holding (que é o cuidado), no handling (que é o manejo, a manipulação) e também na apresentação de objetos. As falhas em estágios primitivos do desenvolvimento contribuem para patologias graves. Nos estágios posteriores as patologias serão cada vez menos graves, em função do amadurecimento do ego já acontecido.

No estágio de dependência absoluta, nos primeiros meses de vida, uma mãe e um ambiente suficientemente bom previne o desenvolvimento de uma deficiência mental não-orgânica, do autismo ou da esquizofrenia.

No estágio de dependência relativa, que ocorre a partir de uns 6 meses de vida, ou quando o bebe for capaz de adotar um objeto transicional (aquele paninho ou brinquedo estimação), existe ali uma pessoa que pode ser traumatizada e, portanto, uma falha neste período pode acarretar tendências antissociais e distúrbios afetivos.

Já a independência relativa, na qual a criança tende a apresentar a capacidade de cuidar de si mesma a falha ambiental não será necessariamente prejudicial. Devido ao nível de amadurecimento do ego já estruturado.

Um ambiente propício para a maturação e desenvolvimento de uma pessoa emocionalmente saudável deve conter alguns aspectos que são relevantes para apresentar uma condição de desenvolvimento. A principal característica desse ambiente é uma funcionalidade, ou seja, na estruturação é uma família que auxilia seus membros a serem mais funcionais – são pessoas que aprendem, crescem, são pessoas com responsabilidade e autonomia.

Pais ou cuidadores suficientemente bons são aqueles que cumprem suas funções básicas de criação e desenvolvimento. São de uma forma firme e flexível, adaptada às circunstâncias e aos fatos de cada momento e que ajuda a todos a estarem sempre num processo de tomada de consciência, de aprendizagem e de crescimento.

Uma forma de avaliar o ambiente familiar é verificar se estão desenvolvendo no seu dia a dia os aprendizados que são necessários para a criação de pessoas funcionais e cada vez mais rumo a independência e autonomia.

Algumas dessas aprendizagens são ligadas a segurança oferecida através de limites claros. Afinal, todos os membros da família precisam de limites, os bebês e crianças pequenas ainda mais. Os limites começam a ser definidos logo no nascimento, onde se oferece o colo, o seio e o espaço que o bebe irá utilizar. E seguem por toda a vida familiar, com as tarefas, os horários, rotinas, valores familiares. Isso implica em direitos e deveres, regras, orientação, contratos e muitos outros itens que darão à criança a certeza de ser amada, cuidada e orientada. A falta de limites claros gera na criança (e nos adultos também) a sensação de estar à deriva, de não ter com quem contar, de insegurança e desamor.

Só quando há segurança no ambiente que o bebê pode utilizar seus impulsos, inclusive os de agressi­vidade, de forma positiva, sem criar dificuldades para o ambiente e para si. A agressividade, principalmente aquela, expressa pelo bebê em seu primeiro ano de vida e que coexiste com o amor, deve ser suportada pelo ambiente. O ambiente neces­sariamente precisa manter-se estável aos ataques sofridos.

O desenvolvimento saudável da criança necessita de um sentimento de confiança, que seja constante e capaz de recuperar-se sempre após um ataque, pois a confiança no ambiente será testada pela criança sempre que ela achar necessário. Somente com a permanência do ambiente confiável e seguro é que o bebê desenvolverá a capacidade de preocupar­-se quanto aos seus atos, redirecionar seus impulsos agressivos a impulsos construtivos.

A destrutividade pertence a todos os sujeitos, quando se perde o direito de exercê-la e de dar conta dela, paga-se um preço por isso. Perde-se a capacidade de assumir respon­sabilidades e a saúde psíquica está atrelada a esta capacidade.

Donald Winnicott, é enfático ao afirmar que a expressão da agressividade não deveria ser negada, pois só assim o ser humano poderá aproveitá-la para reparar e restituir suas ações agressivas por meio do desenvolvimento de recursos internos, de um bom ambiente interno. Para o amadu­recimento do ser é fundamental o desejo incons­ciente de querer reparar, corrigir, drenar os instintos, reconhecer a crueldade que existe em si. Este é o único caminho para sublimar estes impulsos por meio de atividades construtivas.

Quando a criança se comporta de modo antis­social, não significa necessariamente que está doente, o comportamento antissocial, na maioria das vezes, é um pedido de um controle, que precisa vir do exterior e realizado por pessoas fortes, amorosas e confiantes, que possibilitem um envolvimento afetivo. Estando sob o controle exterior a criança antissocial poderá ficar bem. Ela busca por este controle e quando não o tem, em algum momento, se sentirá ameaçada pela loucura. Irá transgredindo contra a sua família ou sociedade com o objetivo de restituir o controle advindo do ambiente externo. Esta busca está permeada por um sentimento de esperança. Esperança de encontrar no ambiente externo aquilo que falhou no estágio da dependência relativa.

Talvez, alguns devem estar se perguntando: como se faz para transmitir um ambiente seguro para um sujeito na primeira infância? Não tem uma formula mágica, mas existe alguns itens que podem ser exercitados pelos pais que desejam prevenir a instalação de comportamentos antissociais em seus filhos e consequentemente o desenvolvimento da drogadição.

O ideal seria que o ambiente, respondesse aos atos antissociais da criança os reconhecendo, nomeando e os ajudando a administrar. Desse modo o momento de esperança pode ser correspondido. O ambiente que não responde dessa forma deixa a criança sem esperança e é novamente no ato antissocial que ela vai reencontrá-la.

É de extrema importância, em relação à tendência antissocial, que atitudes sejam tomadas no princípio do seu desenvolvimento, sejam elas no âmbito familiar ou da clínica. Torna-se cada vez mais difícil alcançar a cura para a desviança deixando o tempo passar. A criança pode torna-se cada vez mais difícil. É importante evitar que a defesa antissocial organizada se instale na conduta do sujeito, pois isso resultaria na delinquência. Na delin­quência estão acrescidos os ganhos secundários dos atos e isto torna ainda mais difícil a possibilidade de intervenções que levem à cura. Além disso, as reações sociais, frente aos atos delinquentes, intensificam-se tornando a situação ainda mais difícil.

Para que os casos de tendência antissocial não evoluam para a delinquência é fundamental uma atitude vinculada a cuidados básicos com o objetivo de prevenir a manifestação da própria tendência antissocial, uma vez que pais e responsáveis sejam orientados e informados sobre a relevância das suas funções e papéis para o desenvolvimento saudável de seus filhos. Ele precisam entender que diante da não realização de ações ambientais suficientes para o amadureci­mento emocional, um comportamento antissocial pode se apresentar como reação à deprivação.

Assim, os limites claros, como citei anteriormente, são tão importantes quanto as trocas afetivas, ou seja, saber conectar com seus sentimentos e sensações, saber expressá-los, saber ser continente do afeto e dos sentimentos dos outros. Isso tanto dos sentimentos ditos positivos (amor, carinho, aconchego, cuidado) como também dos chamados negativos (raiva, medo, mágoa, tristeza). Todos os sentimentos devem ser validados e ajudar as crianças e expressa-los e administrá-los.

É relevante também nesse processo que o ambiente suporte no desenvolvimento da auto estima, que consiste na certeza de que ele tem a capacidade no seu fazer. É um processo de descoberta e de treinamento de suas competências. É necessário aprender a lidar com as diferenças – de opiniões, de características, de habilidades – e principalmente com a valorização de cada um, mesmo sendo diferente. É aqui que se aprende a ser capaz de lidar com solidão, suportar a rejeição e os obstáculos que a vida irá impor. A auto estima é necessária como um suporte para as futuras frustrações.

O ambiente precisa também permitir o desenvolvimento da Autonomia. Que é simplesmente adequar o que cada um pode fazer sozinho, o que precisa de supervisão ou o que a criança não tem ainda idade, habilidade ou competência para fazê-lo. Importante destacar o ‘ainda’, pois em um processo evolutivo, ele chegará a se desenvolver para tal atividade. E um adulto jamais deve fazer por uma criança aquilo que ela dá conta de fazer sozinha. Se isso acontecer, estará aleijando seu desenvolvimento motor e emocional. É preciso permitir que faça e que explore seus limites. As tarefas devem ser simples num primeiro momento, mas nos sinais de  responsabilidade deve ser ampliado esse limite. O que irá oportunizar o processo de independência.

Ninguém no mundo nasce sabendo oferecer um ambiente saudável para seus filhos, mas é preciso maturação e suporte emocional para que possamos através da conexão afetiva nos ligarmos ao instinto e assim disponibilizar desenvolvimento para que as crianças caminhem rumo a independência.

 

Micheli Krayevski Eckel - Psicóloga




 

 

terça-feira, 6 de julho de 2021

Abandono Paterno: Consequências Emocionais e Estratégias de Enfrentamento

 

O ambiente em que a criança cresce tem papel fundamental no amadurecimento emocional e psíquico, e daí vem a importância dos adultos estabelecerem relações maternas e paternas saudáveis. A função materna é importante desde a gestação, as iniciais interações da mãe com o bebê, que oferece as primeiras experiências de prazer, satisfação e incômodo também. Assim como a função paterna, que funciona como um corte, permitindo a separação do conjunto mãe e bebê, para permitir que a criança consiga se constituir como um sujeito. Sendo assim: como a ausência da função paterna afeta a construção do psiquismo infantil?

O abandono paterno pode causar marcas psicológicas com consequências emocionais, sexuais e que ameaçam o desenvolvimento físico, psicológico e emocional considerado normal para uma criança saudável.

As pessoas que sofreram o abandono paterno, com frequência, podem apresentam algumas dessas consequências na idade adulta:

- Baixa inteligência emocional: Isto é, se estressam com facilidade, são pouco assertivos, tem dificuldade para estabelecer limites e ser empáticos; possuem vocabulário emocional limitado, ou seja, não sabem identificar e dar nome as suas emoções; são  mais  predispostos à crises límbicas (emoções à flor da pele).

- Dificuldade de adaptação: tem dificuldade para se adaptar às mudanças que surgem em sua vida (mudanças de emprego, de casa, de cidade), sofrendo muito e de forma prolongada quando estas situações aparecem. As mudanças geralmente provocam muita ansiedade.

- Apego a objetos: são propensos a ter dificuldade para se desfazer de objetos materiais (roupas, livros, documentos...). Geralmente estes objetos representam o sofrimento do abandono. Sofrem muita ansiedade quando precisam se separar, mesmo que temporariamente, do algum objeto.

- Vulnerabilidade a dependência: são pessoas com muita susceptibilidade a construir relações de dependência, seja com o consumo de substâncias psicoativas (álcool e outras drogas) ou ainda, dependência do trabalho, de sexo, pornografia, jogos, tecnologia. Também estabelece relação de dependência com pessoas, principalmente em relacionamentos amorosos, ou à pessoas que lhes forneçam um pouco de atenção, ou qualquer pessoa que represente sua figura paterna ausente, namorados e amigos.

- Passividade nos relacionamentos: São pessoas que frequentemente se mostram muito complacentes com todos, incluindo as pessoas que não conhece. Ignoram ou deixam de lado suas prioridades ou interesses para poder agradar aos outros; as pessoas próximas as descrevem como pessoas muito boas, que escutam e ajudam aos outros sem interesses próprios. Em relacionamentos amorosos é uma pessoa permissiva e costuma ceder as vontades do companheiro (a) e ser explorada. É possível que este comportamento seja uma tentativa obsessiva de fazer com que nenhuma pessoa as abandone ou perca o interesse por elas. Comumente estas pessoas tornam-se especialistas em relações que as machucam, manifestando comportamentos que permitem prolongar e permanecer em relacionamentos destrutivos.

- Mal-estar psicológico: Frequentemente se sente vazio ou sem um propósito de vida. Como se não tivesse um sentido, uma sensação melancólica.

- Vulnerabilidade à psicopatologia: apresentam maior probabilidade de ser diagnosticados com alguma patologia mental do que uma pessoa que não sofreu abandono paterno. Como por exemplo: transtornos de ansiedade (crises ansiosas, insônia, transtornos alimentares...), doenças psicossomáticas, estresse ou transtornos de personalidade.

 

Mesmo que este abandono tenha acontecido há muitos anos atrás (na infância), ele continua repercutindo em sua qualidade de vida. As relações que a pessoa abandonada mantém podem apresentar alguns dos seguintes elementos:

- Relação com pessoas que a anulam constantemente, ou seja, que parecem nunca os escutar;

- Relação com companheiros ou amigos com dependência química;

- Relação com companheiros que maltratam física e emocionalmente;

- Relação com companheiros que cometem infidelidade, ou que a  submetem a ser “a outra” acreditando em promessas que nunca serão cumpridas;

- Relação com companheiros que as submetem a um constante temor de que irão embora e a abandonarão;

- Frequentemente são pessoas muito possessivas;

- Geralmente têm medo de perder alguma coisa;

 

Dentro do processo de psicoterapia, tratamento melhor indicado para aprender a superar o abandono paterno, existem alguns aspectos importantes para elaborar essa dor:

1- Relatar os momentos que lembrar com seu pai, ou as histórias que já ouviu sobre ele. No ambiente de privacidade e escuta ativa da psicoterapia, expressar essas lembranças, os pensamentos que vem com o relato. Importante dar atenção aos sentimentos que surgem, se houver vontade de chorar, chore!

2- Depois de se permitir expressar suas emoções e dar luz às lembranças, que costumam vir surgindo conforme vai aprofundando os relatos, é hora de compreende-los para se humanizar e humanizar a figura paterna que foi por vezes desqualificada. Se você compreende que tem emoções e pode dar nome a cada uma das sensações corporais que elas geram, você começará a ter empatia. Aceitar que uma perda pode provocar tanta dor, evitará que você continue minimizando ou extrapolando com todas as outras pessoas ou situações da sua vida presente.

3- Procure se colocar no lugar dele, exercite a empatia. Provavelmente, culpamos o pai ausente por todos estes anos de abandono. Então procure as possíveis razões por esse abandono. Por exemplo, sabemos que nosso pai pode ter experimentado alguma emoção de medo de não saber ou não poder ser responsável desta mudança em sua vida (ter filhos), sendo essa a causa do afastamento. Obviamente, este fato não justifica um abandono ou qualquer atitude de um pai, mas permite que assim compreendamos o mundo afetivo que vivemos e a assim aceitar os erros dos outros e os nossos. Se o motivo do abandono foi a morte, muito menos é possível culpabiliza-lo, somente compreender emocionalmente que esse abandono afetivo não foi programado, nem mesmo uma escolha.

4- Não procure esquecer, mas conviver com isso. Lembre-se que não estou sugerindo superar a perda, mas conviver com ela. É possível superar a perda de um celular, até mesmo de nosso joguinho favorito, mas superar a perda de um pai é impossível. Este ponto ressalta esta tendência a nos convencermos de que a perda de nosso pai não vai importar, e isto é construir sobre areia. É falso acreditar que algo com tamanha carga emocional pode chegar a não nos incomodar nenhum pouco.

5- Aprenda a perdoar. Seguir a vida em frente depois do abandono de um pai requer perdão e não é algo simples de alcançar. Se o ambiente constantemente mostra o lado ruim do seu pai, se você observa a sua mãe ou irmãos sofrendo muito, certamente acabará absorvendo essa dor. Aprender a perdoar requer amadurecimento emocional, atingir um estado adulto. Auxilia muito nesse processo a espiritualidade. Com fé, ir treinando gradativamente um perdão verdadeiro.

6- Tomar consciência. Ser consciente de todos estes pontos representa um grande avanço, pois conseguiremos identificar a dor dos outros e a nossa; as emoções dos outros e as nossas.

 

Aprender a honrar a vida daqueles que nos geraram, nos amadurece e nos permite acessar nossos próprios sentimentos de maneira madura, consciente e consistente. Essa jornada vale a pena!

 

-> Se você que está lendo esse texto é o terapeuta que está auxiliando seu paciente a lidar com essa dor, o ajude a seguir os passos acima com paciência. Lembre-se sempre que é um processo, um caminho a ser seguido.

 

terça-feira, 22 de junho de 2021

Conselhos para a Micheli jovem:

Logo irei completar 35 anos. Se eu pudesse encontrar comigo mesma a uns 15 ou 20 anos atrás, hoje me vejo apta a me dar alguns conselhos:

Micheli jovem,

Na vida há problemas que se resolvem conversando e problemas que se resolvem parando de conversar. Leva-se anos para separar uma situação da outra. Pratique. Boa parte de sua qualidade de vida dependerá desse discernimento.

Sempre que tiver oportunidade, coma cachorro-quente de rua às 5h da manhã. Num futuro próximo, se manter acordada até meia noite será um feito reservado, com dificuldade, para os dias 31 de dezembro. Salsicha te dará azia e você irá ficar preocupada o quanto esse alimento é cancerígeno. E pão depois das dez... ixxxiiii engorda! 

Sua vergonha não faz sentido. Em 5 anos você não lembrará desses cujos julgamentos você teme.

Cobre pelo seu trabalho. Sem pedir desculpas, sem dar explicações dos motivos. Você merece ser reconhecida financeiramente pelo que faz.

Não compre por impulso ou para agradar os outros. Organize o seu dinheiro. 

Não gaste o que não é seu. O errado é errado, não importa o quanto você tente justificar.

Não fique em casa! Os passeios, acampamentos, as viagens, serão as melhores lembranças que você terá de um tempo que passará rápido. 

Mantenha por perto aqueles que te fazem rir, que você confia e que a conversa flui bem. Alguns deles se tornarão amigos que você levará para a vida. 

Lembre-se sempre do ensinamento do teu pai: fique no grupo dos inteligentes. Você se assemelha com quem você anda.

Teu pai te amou, ele não te abandonou.

Tua mãe te ama. Ela não te deve nada.

Honre esse amor.

Cuide de suas irmãs e diga a elas você as ama. No futuro, você sentirá falta de ter elas por perto todos os dias.

Assista menos TV. Se dedique mais à leitura.

Não coce seus olhos!

Mesmo com preguiça, se dedique a alguma atividade física. Quanto mais você demorar para começar, mais difícil ficará.

Não faça tatuagens sem pensar por no mínimo um ano no desenho e no local. Procure espaços no corpo com menor chance de flacidez. Lembre-se sempre das futuras gestações.

Compre a calça que serve e que você se sente bem. Não use cintura baixa, fica feio e deforma teu corpo.

Não existe solução para quem não te quer. Sofra, chore, mas não se demore.

Não tenha medo de expressar o que você sente, nem de ser quem você é.

Ninguém é melhor do que você. Perceba quem você é, teus potenciais, tua beleza. Cultive tua auto estima.

Cuidado com quem começa uma conversa pedindo desculpas e termina tentando te fazer se sentir culpada.

Seu corpo, com todos os defeitos que você coloca, é sua única chance de estar aqui. Ele te permitirá cheirar, abraçar, experimentar, sentir prazer. É a coisa mais sagrada do universo, pelo simples fato de ser seu. Não se esconda, você é templo do divino.


Fique bem e em paz!

Abraço

Micheli adulta

terça-feira, 18 de maio de 2021

CT's NÃO são manicômios

Com as mudanças na Política Nacional sobre Álcool e Drogas (PNAD), de 2019, houve a redefinição e a inclusão de serviços e dispositivos de saúde que passaram a integrar a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Entre eles estão as Comunidades Terapêuticas (CT's), dispositivo destinado a tratar dependentes químicos. Desde essa medida ressurgiu um desinformado, e podemos dizer, mal-intencionado debate de que as CTs são um retorno aos antigos manicômios. Ou seja, querem dizer que são lugares de reclusão, que afastam os pacientes de seus familiares ou ainda que são uma tentativa de higienização social.

Assim, por eu conhecer intensamente o trabalho da ATENA (www.atenamafra.org.br) e de muitas outras CT’s que desenvolvem um trabalho ético a partir de boas práticas clínicas, baseadas em evidências científicas, busco aqui desmistificando, principalmente para profissionais de saúde, conceitos equivocados sobre esse equipamento de saúde que merece nosso olhar respeitoso e atento. Inclusive para que haja melhoria nos serviços prestados.


As CT’s podem ser definidas como ambientes residenciais livres de drogas, com trabalhos voltados para a (re)habilitação psicossocial. Trata-se de um ambiente de intensa interação social entre seus pares, onde as pessoas com problemas de dependência química convivem de forma organizada e estruturada para promover uma mudança em seu estilo de vida. Estão livres de drogas, enquanto recuperam a sua saúde física, reconstroem valores pessoais e sociais, buscam autoconhecimento e novas formas de estabelecer relações saudáveis.. Também é um ambiente de resgate de autoestima, dignidade, amor próprio, autonomia, ajuda ao próximo e uma visão realista de si e de sua família. A comunidade terapêutica é destinada a ajudar as pessoas num compromisso com a mudança de si mesmo, com a busca da honestidade pessoal e resgate de um projeto de vida, não mais um projeto de morte.

É importante entendermos que a recuperação é considerada um processo demorado em longo prazo, em etapas, numa somatória de cuidados e evoluções pessoais. Não existe um modelo único que funcione para todos. Cada indivíduo terá necessidades diferentes e precisará de equipamentos diferentes de cuidados mediante as necessidades do quadro clínico e da evolução de sua doença naquele momento de vida.

O acolhimento em CTs é tipicamente maior do que em programas de curto prazo (como deseintoxicação hospitalar), mas em geral aqueles que permanecem por mais tempo têm resultados significativamente melhores do que as pessoas que abandonaram precocemente. Isso levou as CTs a promoverem adaptações com a melhoria do acolhimento, com o melhor envolvimento da família e da rede social, bem como o uso da promoção da permanência inicial por meio de entrevistas motivacionais, indução na cultura da CT e outros tipos intervenções psicossociais. Posteriormente ao acolhimento em CT os cuidados contínuos são necessários para manter a recuperação que foi iniciada. Alguns estudos revelaram que a prestação de cuidados, aliada à combinação do tratamento em CT e subsequente cuidado posterior, tem gerado melhores resultados quando a rede de assistência trabalha de forma integrada e de forma eficiente. Realidade essa que no Brasil é  muito falha

A CT é uma experiência em desenvolvimento contínuo que vem reconfigurando as diversas ferramentas de tratamento e de formação das comunidades de mútua ajuda em uma metodologia sistemática de transformação de vidas. Apesar da longa e mundial disponibilidade do tratamento do modelo de CTs, muitas delas sobreviveram com poucos ou nenhum investimento público.

Muitas críticas sobre as Comunidades Terapêuticas passaram a ser apresentadas e as muitas delas passaram a ser questionadas de forma veemente. Entre as críticas estão os altos custos do tratamento residencial de longo prazo, a falta de evidência de eficácia e desrespeito aos direitos humanos percebidos em alguns dos locais visitados. Também são questionadas as altas taxas de evasão e recaída, expectativas pouco realistas, normas sociais de boa convivência entre os pares muitas vezes interpretadas como muito rígidas e a presença do elemento espiritual/religioso.

Apesar de uma longa tradição de experiências de CTs no Brasil e no mundo, a base de evidências cientificas para a efetividade do modelo é ainda limitada. Até porque, a abstinência e o término do tratamento foram as únicas medidas de desfecho nos principais estudos e não objetivaram outras mudanças (menor criminalidade, engajamento em empregos pós tratamento, etc). Somente um único estudo conduzido pelo dr. Pablo Kurlander trouxe dados pós acolhimento diferentes da abstinência absoluta.

Atualmente, muitas Comunidades Terapêuticas oferecem uma abordagem de tratamento, caracterizada pela variedade de recursos terapêuticos oferecidos. Assim como qualquer outro serviço e equipamento de saúde, necessita do desenvolvimento constante de pesquisas e capacitação dos profissionais para oferecer aos dependentes de drogas e seus familiares um atendimento com respeito e profissionalismo, contribuindo para uma mudança verdadeira de estilos de vida.

No Brasil, as CTs são regulamentadas pela RDC 29/2011 da ANVISA e CONAD 01/2015. Aqui, considera-se que as CTs financiadas pelo plano nacional sigam o rigor de suas normativas, fiscalizações e aprimoramentos adequados. O fato de que elas foram incluídas na RAPS não significa que todos os pacientes devem se tratar utilizando essa modalidade, mas sim que ela será mais uma das possibilidades existentes, o que é muito louvável. Destaca-se a importância da fiscalização para que funcionem de acordo com os Direitos Humanos e com as normas técnicas promulgadas, as quais incluem a presença de equipe multidisciplinar, a possibilidade de uso de medicação e o fato de ser um tratamento predominantemente voluntário, em liberdade. Assim, estão longe de serem locais “manicomiais” e muitas delas prestam um valioso trabalho no resgate de vidas e histórias.

Micheli Krayevevski Eckel - Psicóloga da ATENA