segunda-feira, 1 de julho de 2019

Eu Vejo Você


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Em algumas tribos na África do Sul, uma saudação corriqueira (em zulu) é ‘Sawubona’, que significa “Eu Vejo Você". É uma forma de enxergar o outro, de aceitá-lo tal como é, com suas virtudes, nuances, e também com seus defeitos. Em resposta a essa saudação, as pessoas costumam dizer ‘shikoba’ que quer dizer "então eu existo para você". Eu te respeito, eu te valorizo, você é importante para mim. Toda minha atenção está com você, eu vejo você e me permito descobrir suas necessidades, vislumbrar seus medos, me aprofundar nos seus erros e aceitá-los. Eu aceito você como você é, e você faz parte de mim.

Assim como o termo ‘Namastê’, muito utilizado na Índia e no Nepal, por hindus e budistas. Etimologicamente, Namastê é uma palavra originária do sânscrito, que literalmente significa "curvo-me perante a ti" e é a forma mais digna de cumprimento de um ser humano para outro. Em um sentido mais amplo, significa “a Divindade que habita em mim, saúda a Divindade que habita em você”

Em Avatar, um belíssimo filme de ficção científica, o povo nativo de Pandora, ao invés de dizer “eu te amo" diziam “eu vejo você”. Desde a primeira vez que assisti, essa expressão mexeu comigo e hoje, de forma mais intensa, volto a pensar sobre isso.

Quando digo que vejo o outro é porque o reconheço como um semelhante a mim, vai além da superfície, é um mergulhar no que podemos chamar de ‘SER’. Significa mais do que o ato fisiológico de olhar o outro em sua aparência. Significa ver com um olhar amoroso dentro do outro, com a compreensão, o acolhimento e conexão de nossa vulnerabilidade humana e ainda divindade em comum.
Assim, eu vejo a sua dor; eu vejo os seus potenciais; eu vejo você e aceito o que eu vejo, mesmo aquilo que não me agrada, mesmo aquilo que não encaixa nos meus padrões.
Eu vejo você, é a minha maneira de recebê-lo incondicionalmente, e ao fazê-lo, eu permito que você se veja e o perceba como você é.
Eu vejo você, significa deixar-se irradiar, sem filtros, sem máscaras e sem medos.
Eu o vejo sem lhe julgar, sem lhe culpar, respeitando suas escolhas e a sua consciência presente.
Eu vejo você além de quaisquer expectativas e projeções, pois elas podem prejudicar o meu olhar e esconder sua identidade verdadeira.
Eu vejo você em todos os seus aspectos e na riqueza de suas experiências vividas.
Eu vejo sua Luz e a centelha divina que habita em você.

Quando digo ”Eu Vejo Você”, não é apenas ”Eu estou só vendo você”. É muito mais do que isso, estou dizendo que: estou deixando de lado o meu julgamento, os meus preconceitos para enxergar você de verdade, inteiramente, como você realmente é, e aceito você exatamente do jeito que é.
Eu vejo você porque eu também consigo me ver, nós somos a expressão do divino.


Micheli Krayevski Eckel

terça-feira, 30 de abril de 2019

Dar nome aos Sentimentos


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Minha filha costuma ser uma criança tranquila, mas tem dias que ela é capaz de me tirar do prumo! E a partir dessas experiências é que pude experimentar algo que falo diariamente para os adultos: é preciso aprender a expressar, dar um nome para o que sentimos.
O início desse processo de maturidade começa na mais tenra infância, quando os pais nomeiam os sentimentos dos bebês. “Tá chorando porque está com FOME” com essa fala e com o alimento a mãe cria um significante para o filho que passa a interpretar que aquele desconforto que está sentindo se chama FOME. Em um belo dia toda criança cai, se machuca. O cuidador ao ver seu choro nomeia: “Aiii o neném está com DOR” e a criança passa a interpretar e generalizar que todas as vezes que sentir aquela sensação em seu corpo pode chamar de dor... e assim vamos criando nosso repertório de sentimentos: ganhou um presente? Ficou FELIZ; quebraram seu brinquedo? Zangado; o peixinho morreu? TRISTEZA...Tristeza? Não! O nome desse sentimento se chama LUTO; assim como quando recebe um não – você não fica triste, fica FRUSTRADO... e assim começa a confusão! Quando a nomeação de sentimentos é muito simplista, sem ampliar o repertório da criança (e no adulto se isso acontecer tardiamente, geralmente em psicoterapia) a tendência é que o processo de expressão e de maturação dos sentimentos se torne falha.
Crianças não nascem sabendo expressar o que sentem, somos nós os adultos do seu entorno quem devemos estimular.
Dia desses meu marido e eu, saindo do trabalho fomos buscar o Sofia (5 anos) na escola. Dentro do carro nós conversando e ela reclama: “vocês não param de falar e não me escutam!”. Assustados com a intervenção dela, pedimos que ela falasse. Falou algumas coisas sobre o teatro que estavam ensaiando na escola, nós ouvimos atentamente. Logo retomamos nosso assunto. E ela novamente se queixou que “ninguém me dá atenção nessa casa”. Nos entreolhamos e notamos que algo estava fora do “padrão” da Sofia. Ao longo da noite fomos procurando dar espaço para que ela pudesse expressar o que estava acontecendo. Brincamos, ouvimos sobre o teatro novamente, jantamos juntos. A coloquei para dormir, li a historia, ao terminar ela me olhou muito séria e disse: “mãe, hoje eu tive um dia muito difícil” a estimulei a me contar o que havia acontecido: “uma menina na van ficou cantando ‘com quem será que a Sofia vai casar’. Nada haver né mãe? Criança nem casa. Eu falei pra ela parar e ela continuou mais ainda” e ainda completou: “pra piorar minha amiga quis apagar meu desenho e rasgou minha atividade da escola”. Achei a coisa mais fofa do mundo ela me contando seus problemas, segurei minha vontade de esmaga-la e a ouvi empaticamente. Toda aquela alteração de comportamento aconteceu para que ela pudesse encontrar um ambiente seguro para se expressar e falar do seu dia difícil.
Assim, o nosso papel como pais é crucial no desenvolvimento da autorregulação das emoções. A autorregulação é a habilidade que temos de gerenciar nossas emoções de maneira eficaz.
Para auxiliar nossos filhos no seu desenvolvimento emocional é importante:
1-      Dar nome em tempo real para os sentimentos experimentados pela criança: “Que sorriso lindo! Você está feliz!”; “Você está frustrado porque não comprei o seu doce preferido”
2-      Seja modelo de vocabulário. Óbvio que é muito mais fácil gritar ou falar um palavrão quando estamos com raiva. Mas as crianças aprendem a expressar sentimentos de forma adequada quando nós também o fazemos. Assim, devemos procurar dizer o que estamos sentindo. Diga que está preocupado, estressado, orgulhoso, alegre ou triste. Ao te ver nomear, a criança aprende muito!
3-      A empatia é capaz de mudar o mundo! Quando temos a capacidade de se colocar no lugar do outro, somos capazes de olhar para a sua dor com mais clareza e respeitar esse sentimento. “Sei que você está triste. A mamãe vai te abraçar para que você chore e coloque pra fora essa tristeza”. “Você está com medo. É normal termos medo das coisas. Papai está aqui pra te proteger”
4-      Nunca podemos minimizar o sentimento dos outros, principalmente de nossos filhos. Jamais podemos dizer “não foi nada” muito melhor que digamos “vai passar”.
5-      Podemos ensinar nossos filhos a identificar os sentimentos em outras pessoas. Sempre que ver alguém expressando algum sentimento de forma nítida, podemos nomear. “Veja como aquele menino se sente vitorioso ao ganhar a corrida”. Depois que você perceber que ele aprendeu a identificar, vocês podem até brincar, de forma discreta, de adivinhar o que as pessoas envolta estão sentindo.
6-      Existem alguns livros que estimulam essa identificação de sentimentos. Compre esses livros e dê de presente. Pode ser um ótimo estimulo para esse processo de identificação que irá ajuda-lo a amadurecer e criar uma pessoa mais saudável.
Ensinar as crianças a reconhecer e expressar sentimentos é uma tarefa que exige tempo e paciência. A melhor forma é incorporar essas dicas no dia a dia, fazendo com que seja um assunto pertencente a rotina e as relações familiares.
No mundo dos adultos as dificuldades em nomear sentimentos devem ser trabalhadas nas relações de confiança, especialmente em psicoterapia. Dar nome ao que sente, é cientificamente comprovado que alivia sintomas de ansiedade e depressão.

Abraço!

Micheli Krayevski Eckel
Psicóloga

terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

O Alcoolismo e a Memória


No caso de A. ele tinha como se fosse o momento presente a época em que serviu ao exercito. Falava sobre sua farda e por vezes, do nada, saía falando que iria pegar o ônibus para voltar ao quartel. Não fazia referencia ao casamento, divorcio, nem mesmo o nascimento da filha. Não compreendia onde estava. Diariamente lhe era explicado verbalmente, e houve tentativas também por escrito, de onde estava, o que estava fazendo, mas nas próximas horas, já voltava com a mesma referencia temporal anterior.
A. tem 39 anos, é divorciado, tem uma filha de 8 anos e trabalhava como açougueiro. Era dependente de álcool há muitos anos, foi bebendo cada vez mais e muitas vezes acabava não se alimentando. Então, por intervenção de uma irmã foi conduzido para tratamento psicossocial em Comunidade Terapêutica. Já nos primeiros dias era notável uma perda de equilíbrio e ele queixava-se de ver as imagens duplicadas. A confusão mental ficou notável a partir de aproximadamente 5 dias de abstinência do álcool. Com a desintoxicação ele voltou a enxergar normalmente, mas a taxia manteve-se alterada e sua memória comprometida.
O A. sofre da Sindrome de Wernicke-Korsakoff. O Wernicke se refere ao comprometimento motor. Mas hoje irei me ater em especial a doença descrita pela primeira vez no final do século XIX pelo neurologista russo Sergei Korsakoff. Ele percebeu os sintomas inicialmente em consumidores regulares de vodca. Somente mais tarde, descobriu que essa forma de amnésia decorria devia a deficiência de vitamina B1 (tiamina) pelo abuso de álcool e a desnutrição.
Resultado de imagem para sindrome de wernicke korsakoffA patologia normalmente se desenvolve da mesma maneira: confusão mental, paralisia da capacidade motora ocular, distúrbios no equilíbrio, coordenação motora limitada, e a dramática perda da memória. Fica no paciente incapacidade de armazenar novas informações. Lembranças de eventos que ocorreram antes da fase aguda também são afetadas. Em alguns casos, anos e por vezes décadas são apagadas, como se nunca houvesse existido.
No nosso cérebro existem três sistemas de memórias de longo prazo funcionando concomitantemente. O de memória semântica retém conhecimentos como os da escola (como regras gramaticais, por exemplo), esses no hipocampo e no lobo temporal. Em pessoas com síndrome de Korsakoff, essa memória permanece intacta.
As habilidades motoras, como andar de bicicleta, são possíveis graças a memória de procedimento, que trabalha como uma memória implícita, em segundo plano, não temos uma consciência plena dela. Ela liga é ligada com o córtex motor. Também na Korsakoff não apresenta prejuízo.
É a memória episódica ou auto-biografica que possibilita a retenção de eventos vividos pessoalmente no dia-a-dia. Neste circuito as informações saem do hipocampo, passam pelos corpos mamilares, pelo tálamo e vão para o córtex cerebral. Na síndrome de Korsakoff, os corpos mamilares afetados interrompem o circuito da memória episódica e a pessoa não consegue reter novas informações.
Impossível não lembrar da animadíssima Dory, a peixinha azul do filme Procurando Nemo, que sofria de perda de memória recente e não absorvia novas informações; ou mesmo da comédia romântica Como Se Fosse a Primeira Vez, que o casal precisou desenvolver uma forma específica para conseguir evoluir em um relacionamento em que a personagem, da mesma forma, não armazenava novas lembranças.
O A. ainda teve sorte. Com a reposição de vitamina B1 diariamente, ele voltou lentamente a absorver algumas lembranças e a recuperar alguns poucos fatos significativos de sua vida. Isso o permitiu reestabelecer laços com a filha e conduzir razoavelmente sua vida. Conseguiu se aposentar por invalidez e hoje vive no interior da cidade, sob os cuidados de familiares. A. não voltou a ingerir bebidas de álcool.

Micheli Krayevski Eckel
Psicóloga CRP 12/08587