domingo, 8 de março de 2020

A Capacidade de Estar Só


Vou aproveitar o meu momento vivido e trazer algumas reflexões que tenho feito comigo mesma e com alguns pacientes sobre um dos conceitos winnicottianos que mais admiro: “a capacidade de estar só”. Para isso, recomendo o texto de Winnicott  “A capacidade para estar só”, escrito em 1957, lido em uma reunião da Sociedade Britânica de Psicanálise em julho daquele ano e publicado em seu livro ”O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional”. No texto, Winnicott nos diz que a capacidade de "estar só" é um fenômeno altamente sofisticado. Justamente por exigir um alto nível de maturação emocional.
Tá, mas como assim? Como defender um conceito desses em uma época onde muitos parecem lutar desesperadamente para escapar de qualquer sentimento de solidão? Afinal, já notou que quando você chega em casa e não tem ninguém, mais do que depressa liga a TV ou põe uma música para tocar? No ápice da privacidade que buscamos ao utilizar o banheiro, o celular passa a ser nossa grande companhia. Nas redes sociais buscamos incansavelmente esse alguém que nos olha, e expressa esse olhar com os todos likes possíveis.
Podemos até pensar que quem está em recolhimento, ou em silêncio, ou isolado está se utilizando de alguma defesa contra um sentimento de perseguição, tristeza profunda ou um medo. O "estar só" nos dias atuais muitas vezes é encarado como "depressão", "introversão", enfim, como algo patológico, numa completa inversão de significados.
Assim, não nos deixa perceber que, em muitas vezes, ficar só é uma capacidade a ser conquistada. Nesse sentido, "estar só" não é o mesmo que "sentir-se sozinho" ou "estar isolado" pois, como Winnicott nos diz: a pessoa pode estar num confinamento solitário e, ainda assim não ser capaz de ficar só. Ou, pelo contrário, pode estar absolutamente sozinha e não sentir-se isolada da vida. Assim, "estar só" está ligado a uma capacidade de apreciar esse fenômeno sofisticado. Sentir-se assim, é uma conquista da pessoa, algo que para mim se assemelha a liberdade.
Existe um paradoxo aí? Sim, existe! Pois se pode "estar só" mesmo na presença de alguém. Aquela já conhecida metáfora de se sentir sozinho em meio a multidão. Tudo isto esta sustentado nas primeiras experiências do bebê com sua mãe. Imagine um bebê sendo alimentado e a mãe conferindo suas redes social. Este deveria ser o momento em que o olhar da mãe o estaria desenvolvendo a capacidade de se tornar sujeito. Com a ausência desse olhar, o que sobra é a solidão. Já uma “mãe suficientemente boa” (também conceito de Winnicott) com a segurança de seu olhar, desenvolve a capacidade de manter-se ao lado de seu filho, mesmo que ela não esteja ali. Constitui dentro dele a segurança da presença. É este processo que permite o desenvolvimento da capacidade de estar só. O bebê a mantém presente dentro se si, interiorizada. Uma espécie de solidão compartilhada. Este processo é uma conquista porque revela nossa maior integração na personalidade, afastando mecanismos de defesa primitivos, que são carregados de ansiedade, para mecanismos mais refinados e maduros. É neste momento que, através de um ambiente suficientemente bom que apresenta objetos bons, que experimentamos a confiança, e podemos experimentar e sobreviver as seguidas ausências da própria mãe, nos tornando capazes de descansar/relaxar, mesmo na sua ausência. 
O exemplo mais clássico da “capacidade de estar só” é o bebê que acorda depois de um sono tranquilo e aproveita esse momento no berço para brincar com suas mãozinhas, assistir o dançar do seu móbile... somente quando encontrar algum tipo de desconforto – como a fome, irá chorar e chamar pelo cuidador. Este é um bebê maduro. Já um bebê ansioso, ao se perceber sozinho no berço, se desespera e chora para que um alguém venha ao seu socorro.
É a partir de gratificações satisfatórias nesta fase inicial que a "confiança" surge como aquilo que nos permite ter capacidade de estar só, na presença ou ausência do outro, pois, de fato, esse outro que nos inspira confiança na vida está interiorizado em nós, como uma experiência acolhedora.
Então, podemos dizer, segundo Winnicott, que, esta nossa capacidade de estar só se desenvolve bem lá atrás, nas primeiras experiências do bebê, quando seu frágil ego ainda é compensado pelo da mãe. Será, portanto, a capacidade desta em oferecer ao bebê a confiança no existir e na vida, que vai possibilitar a introjeção de um símbolo da própria mãe, carregando-a consigo como representação da confiança que tem em si mesmo e no mundo.
Qual a situação contrária de tudo isto? Uma vida pouco autêntica, falsa em muitos aspectos, e potencialmente patológica, na qual não conseguimos nos sentir seguros, principalmente quando nos vemos sozinhos. Os nossos comportamentos revelam a incapacidade de estar só. Quando pensamos nas necessidades que muitos têm, hoje em dia, de conduzir suas vidas a partir de estímulos externos permanentes. Encontrando somente relacionamentos frustrados, tentativas sexuais de encontrar no outro uma plenitude inalcançável e até mesmo o uso de substancias psicoativas (álcool, drogas e medicamentos). Essa necessidade frenética de estar em movimento, de estar sob estímulo, de estar sob barulho intenso, pode estar revelando uma incapacidade de estar só, um recolhimento necessário para a própria integração de vários aspectos de nossa personalidade.
Poder estar só é uma conquista, uma capacidade, algo que revela que o amadurecimento pôde continuar a partir de uma confiança introjetada com as experiências de gratificação satisfatórias em nosso ambiente inicial. É sobre isto que precisamos pensar quando estamos diante de comportamentos tão submissos à estímulos da realidade ou de isolamento e retraimento.
A "confiança", conquistada a partir das experiências satisfatórias que tivemos em nosso ambiente inicial, é a base para o desenvolvimento de nossa capacidade de "estar só", pois sempre teremos ao nosso lado a segurança trazida por aqueles momentos. Isto nos tornará mais confiantes em si mesmo e na relação com as pessoas e a realidade.
Enfim, se somos capazes de estar só é porque um dia pudemos experimentar segurança, sustentação e amor, e com isso mantemos a confiança no presente e no futuro, em nós mesmos e no mundo!

Micheli Krayevski Eckel
Psicóloga