quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Dependência Química e Psicanálise


A psiquiatria, no caso das adicções, é de fundamental importância na medida em que oferece ao meio científico a possibilidade de definição da dependência química, como uma síndrome passível de diagnóstico e tratamento. Já por sua vez, a psicanálise nos auxilia a compreender os mecanismos psíquicos envolvidos nesse processo patológico.
Freud, em seu trabalho: “O Chiste e sua Relação com o Inconsciente” deu os primeiros passos da psicanálise no estudo da dependência química. Ele relacionou a drogadição com a satisfação de necessidades infantis primárias. Postulou que a origem das drogadições está na fase oral do desenvolvimento, do nascimento até aproximadamente 2 anos de vida. Assim, a toxicomania pode ser interpretada como uma fixação oral. A maior contribuição de Freud, nesse caso, foi descrever a dinâmica da oralidade que inclui aspectos como a intolerância a espera na satisfação de desejos e a importância da fixação e da regressão. Em “Luto e Melancolia” Freud afirmou que a embriaguez alcoólica pertence ao grupo dos estados maníacos na medida em que se produz estados eufóricos e esses, por sua vez, asseguram que algo não apareça na consciência. “Aquilo que o ego dominou e aquilo sobre o qual está triunfando permanecem ocultos”.
Segundo Silveira Filho, no livro “Drogas: uma Compreensão Psicodinâmica das Farmacodependências”, vários outros psicanalistas começaram a estudar a toxicomania partindo das primeiras prerrogativas de Freud. Pierre Clark estudou a relação entre o alcoolismo e a depressão. Kielholz descreveu a toxicomania como uma neurose narcísica relacionada à psicose maníaco-depressiva. Rado diz que a função da droga é anestesiar o sofrimento do adicto em decorrência de suas características depressivas e maníacas e associou a toxicomania à liberação de impulsos destrutivos. Para Simmel a droga atua neutralizando o superego, deixando o ego livre para reencontrar a autoestima perdida por meio de um processo regressivo que vai fazendo do adicto uma criança cada vez mais narcisista, que organiza a sua atividade consciente obedecendo, quase que exclusivamente, ao princípio do prazer infantil. Rosenfeld acredita que o adicto, por suas fragilidades, tenta fugir dos estados depressivos que o ameaçam recorrendo à droga com o objetivo de produzir os estados maníacos.
Para Rosenfeld, em “Os Estados Psicóticos”, abordando a teoria Melanie Klein, diz que o fenômeno da toxicomania não se deve apenas à regressão oral do toxicômano (como sugeriu Freud), mas também a uma excessiva divisão do seu ego e seus objetos internos, a qual produziria uma extrema fragilidade egóica. Segundo ele, o toxicômano estaria fixado na posição esquizo-paranóide, embora tenha atingido parcialmente a posição depressiva, na qual dificilmente poderia tolerar o seu ingresso total. Com a droga, justamente, o que ele tenta é evitar cair na posição depressiva porque representa a incorporação dos seus aspectos dissociados. A possibilidade desta incorporação implicará para o toxicômano na desintegração total de seu ego, ou seja, a psicose. O toxicômano encontra na droga um caminho quimicamente efetivo para superar sua fragilidade egóica e assim, supostamente, evitar sua desintegração psicótica. Com isso, a droga passa a ser um objeto idealizado que irá neutralizar a ansiedade paranóide que provém da ameaça constante do núcleo psicótico. A droga entra com a finalidade de conter a parte psicótica da personalidade do adicto, mantendo uma estruturação, mesmo que frágil. Em muitos casos, essa estruturação não consegue se manter, pois quanto mais cindida está a personalidade do indivíduo, maior é o risco de a droga desencadear um surto psicótico. É possível perceber a utilização de mecanismos de defesa primitivos próprios da posição esquizo-paranóide, tais como: identificação projetiva, negação, idealização, cisão e pensamento onipotente.
Utilizando como referência a teoria de Winnicott, quando ele escreve: “O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional” o desenvolvimento emocional do dependente químico, ocorreram falhas ambientais em um estágio precoce, especificamente na passagem da fase de dependência absoluta para a fase de dependência relativa, as quais impossibilitaram o desenvolvimento adequado.  A fase de dependência absoluta ocorre após o nascimento. É o momento em que o bebê é totalmente dependente da mãe ou do cuidador, aquele que exerce função materna. Ele ainda não é capaz de perceber que seu corpo é separado do corpo de sua mãe, já que são pessoas diferentes. Nessa fase, a mãe deve adaptar-se da forma mais completa possível às necessidades do bebê. Assim, a mãe possibilita que o bebê viva as necessárias experiências de onipotência. Por exemplo, se o bebê tem fome, a mãe oferece o seio para alimentá-lo. Com isso, o bebê vive a ilusão de que foi ele quem criou o seio, que ele cria a realidade. Essas experiências de ilusão, de ser o criador do mundo, são muito importantes para um desenvolvimento saudável. Com o desenvolvimento, é natural que o bebê, aos poucos, viva a experiência de separação da mãe; que possa ir percebendo que ele e a mãe são pessoas separadas física e psicologicamente. É a fase de dependência relativa, que se desenvolve a partir dos cinco ou seis meses de idade. A mãe suficientemente boa, vai inserindo o princípio de realidade, desiludindo o bebê gradativamente. As repetidas experiências de ilusão possibilitaram o surgimento de uma área intermediária de experiência entre a realidade subjetivamente percebida e a realidade objetivamente percebida denominada espaço potencial. É uma área intermediária entre a ilusão e a realidade. É aqui que os objetos e fenômenos transicionais têm o seu lugar e são esses que muito ajudam o bebê na elaboração da separação com relação à mãe. Os objetos transicionais são objetos eleitos pelo bebê, como ursinhos, fraldinhas, a ponta do cobertor.  O objeto transicional representa, ao mesmo tempo, a realidade interna e externa e oferecem conforto ao bebê. Na medida em que a criança vai se desenvolvendo, o objeto transicional vai perdendo seu significado e é deixado de lado, podendo ser resgatado em alguns momentos difíceis, que exijam maior proteção. Os objetos transicionais não são nem puramente imaginação, nem puramente realidade. Representam a entrada no mundo simbólico. O objeto existe na realidade, mas seu significado é simbólico. No caso da dependência química, a patologia se instala na medida em que há a cronificação do objeto transicional, isto é, quando a relação com o objeto persiste de modo exclusivo e prolongado. Dessa forma, o objeto não serve para elaborar a ausência materna e sim para negá-la. O uso cronificado implica a ilusão de que o objeto é a mãe. Isso ocorre, geralmente, quando há repetidas falhas relacionadas ao cuidado materno, especialmente nesse caso, na apresentação dos objetos ao bebê na fase de dependência relativa. O contato com os objetos passa a ser mais importante do que o contato com as pessoas, principalmente no que se refere ao apaziguamento de angústias. Com isso, instala-se uma tendência a buscar objetos concretos para aplacar o sentimento de vazio, angústia e solidão. Assim, as substâncias psicoativas são fortes candidatas a exercer esse papel.
Atender um indivíduo com diganóstico de dependência química não é uma tarefa fácil. Experimentamos sentimentos intensos, devido a ampla utilização de mecanismos de defesa, transferência e a fragilidade da abstinência. Trabalhar com dependência química envolve desenvolver tolerância à frustração, ao mesmo tempo fé e esperança da possibilidade de uma mudança de vida. Munidos de teorias psicanalíticas e de capacidade de continência é possível oferecer tratamento digno ao dependente químico. É importante ressaltar a necessidade de atendimento interdisciplinar, profissionais capacitados, grupo de apoio, reinserção social, associados ao tratamento psicológico é possível produzir resultados positivos.

Micheli Krayevski Eckel
Psicóloga CRP 12/08587
(47) 99193-6553





Nenhum comentário:

Postar um comentário