sábado, 15 de agosto de 2020

A Adicção como Objeto Transicional

A psicanalista francesa Catherine Audibert escreveu em 2008 um livro intitulado “A capacidade de ficar sozinho” (tradução livre), nele ela traz seus estudos voltados às relações objetais. Audibert não enfoca no comportamento aditivo propriamente dito, mas sim no mecanismo psíquico e emocional da adicção. E quando se refere ao comportamento aditivo, não se refere somente ao uso compulsivo de drogas, mas também o jogo, sexo, compras...

Importante ressaltar de antemão, que anterior a adicção, está a incapacidade dessa pessoa estar só, sem que seja invadida por um intenso sentimento de solidão.

No conceito winnicottiano da transicionalidade é por onde pode-se começar a compreender a adicção, que é concebida e fixada na primeira infância.

A ilusão da onipotência é o termo que se define pela certeza que o bebê tem que o seio que o amamenta é parte integrante de seu próprio corpo. É função da mãe, uma mãe suficientemente boa, ir gradativamente o desiludindo e fazendo do seio não mais parte integrante, mas sim uma posse (no sentido objeto). “Pertence-me, mas não sou eu”

Posteriormente, ocorre a cisão e a criança opta por um objeto transicional (pode ser um ursinho, um paninho...). Este objeto, que remeterá a presença materna, e por isso é essencial que seja um objeto bom, não permitirá que a solidão o domine. Só que ao contrario do seio que não estava disponível constantemente, o objeto transicional é conservado pela criança. Ela é quem decide a distância entre ela e tal objeto.

A ligação e o afastamento do objeto transicional deixa no sujeito uma marca: fica na mente do indivíduo um espaço transicional que, assim como o objeto transicional, é intermediário entre o interno e o externo. É nesse espaço que se produz muitas das atividades criativas do homem, como as artes, a musica, etc. que “representam” o mundo interno para o exterior e, em certo sentido, “representa” a realidade para si mesmo.

A proposta teórica da Catherine Audibert é a de que se tome a capacidade ou incapacidade de estar só como uma nova linha divisória entre o normal e o patológico. O próprio sentimento de ser estaria condicionado à possibilidade de se gozar uma solidão serena, por oposição a uma solidão mortífera.

Os adictos tentam fugir do vazio uma vez que o outro preencheu tudo, essa mãe esteve intensamente presente e supriu em demasia todas as suas necessidades – foi o excesso de leite –, mas o vazio é um vazio necessário. O preenchimento total faz com que a ausência seja gigantesca! Então a solidão que não foi aprendida a lidar e que não o ensinou a se proteger do outro, ele busca a droga, para se proteger do outro e de si mesmo.

A presença do desejo do adulto não propicia o espaço seguro de que a criança precisa para a constituição de uma interioridade confortável, à qual cada pessoa precisa poder recorrer ocasionalmente e com a qual deve poder contar. É sobre o ambiente que não permite que este espaço se constitua, dá para pensar que alguns pais não deixam a sua criança gozar momentos de solidão, pois eles são por demais presentes, estimulantes, excitantes, angustiantes ou por demais dependentes desta criança que tem por vezes a função inconsciente de evitar a solidão de seu (seus) pais (comumente a mãe).

Normalmente se pensa em uma personalidade dependente em sujeitos privados, mas bem na verdade a grande maioria dos comportamentos aditivos decorrem de um sujeito deprivado.

As adicções podem ser pensadas como uma estratégia paralela de sobrevivência. Elas se colocariam como uma última tentativa de defesa antes da loucura, ou mesmo da morte psíquica. O uso de determinadas drogas seria uma forma de buscar aquela solidão serena, um resguardo com relação ao objeto, a construção de um espaço de proteção que não pode ser desfrutado de outra forma.

A adicção seria uma tentativa de passar sem o outro, evitar essa experiência vivida como insuportável. A alteridade constrange o sujeito a sair de sua reserva protegida e a embriaguez seria um recurso para fazer calar a angústia e reencontrar a quietude. A droga seria o seu objeto transicional, que o faz ter uma relação do interno com o externo.

A dependência de um objeto (droga, jogo etc.) seria a procura desesperada por não depender mais do outro humano, cuja presença é insuportável. Os objetos de investimento passam a funcionar segundo o modelo da perversão: eles são efetivamente desconsiderados em sua alteridade e reduzidos a simples e controláveis objetos de gozo. Esta dependência é então uma resposta (reação) à primeira dependência, não um simples prolongamento dela.

O que torna a estratégia adictiva paradoxal é que, na ânsia por não depender do outro, corre-se o risco de se passar a depender de forma primária de um objeto externo, do qual a pessoa se torna escrava – que é sentido do termo “adicto”. A relação com o objeto transita do campo do desejo e do prazer para o da autoconservação.

Assim, em um recurso bastante distinto do neurótico, o adicto recuaria a um estado de pura sensação: a busca por uma sensação de tal intensidade que lhe impede de perceber a existência ao outro. O relato de sentimento de embotamento emocional é frequente, como se estivesse com ausência de qualquer sentimento

Sob o efeito da substancia a confusão e o ruído do mundo são afastados e ele encontra entorpecimento apaziguante. Aquilo que é sempre apontado como um dos grandes prejuízos sofridos pelo adicto – o empobrecimento do repertorio de interesses na vida e a redução de tudo resumido simplesmente à busca pela “próxima dose”. É como se houvesse uma redução geral da experiência e o mundo ficasse mais simples, com menos “itens” a controlar.

Isto vem ao encontro, de forma dramática, do que observamos sobre as adicções e sua busca compulsiva e exclusiva por sensações prazerosas, a tentativa de evitar a intersubjetividade, a redução do outro a uma dimensão de simples objeto de uso e gozo.

As adicções e compulsões certamente são um importante caminho para a compreensão de como se constitui e estrutura (ou mal se constitui) a subjetividade.

 

“É por razões inexplicáveis que toda pessoa do mundo nasce com um grande buraco no meio do peito. Ainda que não seja desconfortável é normalmente considerado indesejável... e muitas pessoas tentam preencher com alguma coisa. Tem gente que preenche com religião, outros compram coisas e alguns até colocam outras pessoas. EU deixo o meu como está... porque acho que se eu correr contra o vento no ângulo certo ele cantará um assovio”

Micheli Krayevski Eckel - Psicóloga

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