terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

O Alcoolismo e a Memória


No caso de A. ele tinha como se fosse o momento presente a época em que serviu ao exercito. Falava sobre sua farda e por vezes, do nada, saía falando que iria pegar o ônibus para voltar ao quartel. Não fazia referencia ao casamento, divorcio, nem mesmo o nascimento da filha. Não compreendia onde estava. Diariamente lhe era explicado verbalmente, e houve tentativas também por escrito, de onde estava, o que estava fazendo, mas nas próximas horas, já voltava com a mesma referencia temporal anterior.
A. tem 39 anos, é divorciado, tem uma filha de 8 anos e trabalhava como açougueiro. Era dependente de álcool há muitos anos, foi bebendo cada vez mais e muitas vezes acabava não se alimentando. Então, por intervenção de uma irmã foi conduzido para tratamento psicossocial em Comunidade Terapêutica. Já nos primeiros dias era notável uma perda de equilíbrio e ele queixava-se de ver as imagens duplicadas. A confusão mental ficou notável a partir de aproximadamente 5 dias de abstinência do álcool. Com a desintoxicação ele voltou a enxergar normalmente, mas a taxia manteve-se alterada e sua memória comprometida.
O A. sofre da Sindrome de Wernicke-Korsakoff. O Wernicke se refere ao comprometimento motor. Mas hoje irei me ater em especial a doença descrita pela primeira vez no final do século XIX pelo neurologista russo Sergei Korsakoff. Ele percebeu os sintomas inicialmente em consumidores regulares de vodca. Somente mais tarde, descobriu que essa forma de amnésia decorria devia a deficiência de vitamina B1 (tiamina) pelo abuso de álcool e a desnutrição.
Resultado de imagem para sindrome de wernicke korsakoffA patologia normalmente se desenvolve da mesma maneira: confusão mental, paralisia da capacidade motora ocular, distúrbios no equilíbrio, coordenação motora limitada, e a dramática perda da memória. Fica no paciente incapacidade de armazenar novas informações. Lembranças de eventos que ocorreram antes da fase aguda também são afetadas. Em alguns casos, anos e por vezes décadas são apagadas, como se nunca houvesse existido.
No nosso cérebro existem três sistemas de memórias de longo prazo funcionando concomitantemente. O de memória semântica retém conhecimentos como os da escola (como regras gramaticais, por exemplo), esses no hipocampo e no lobo temporal. Em pessoas com síndrome de Korsakoff, essa memória permanece intacta.
As habilidades motoras, como andar de bicicleta, são possíveis graças a memória de procedimento, que trabalha como uma memória implícita, em segundo plano, não temos uma consciência plena dela. Ela liga é ligada com o córtex motor. Também na Korsakoff não apresenta prejuízo.
É a memória episódica ou auto-biografica que possibilita a retenção de eventos vividos pessoalmente no dia-a-dia. Neste circuito as informações saem do hipocampo, passam pelos corpos mamilares, pelo tálamo e vão para o córtex cerebral. Na síndrome de Korsakoff, os corpos mamilares afetados interrompem o circuito da memória episódica e a pessoa não consegue reter novas informações.
Impossível não lembrar da animadíssima Dory, a peixinha azul do filme Procurando Nemo, que sofria de perda de memória recente e não absorvia novas informações; ou mesmo da comédia romântica Como Se Fosse a Primeira Vez, que o casal precisou desenvolver uma forma específica para conseguir evoluir em um relacionamento em que a personagem, da mesma forma, não armazenava novas lembranças.
O A. ainda teve sorte. Com a reposição de vitamina B1 diariamente, ele voltou lentamente a absorver algumas lembranças e a recuperar alguns poucos fatos significativos de sua vida. Isso o permitiu reestabelecer laços com a filha e conduzir razoavelmente sua vida. Conseguiu se aposentar por invalidez e hoje vive no interior da cidade, sob os cuidados de familiares. A. não voltou a ingerir bebidas de álcool.

Micheli Krayevski Eckel
Psicóloga CRP 12/08587


Nenhum comentário:

Postar um comentário