A psiquiatria, no caso das adicções, é de fundamental importância na
medida em que oferece ao meio científico a possibilidade de definição da
dependência química, como uma síndrome passível de diagnóstico e tratamento. Já
por sua vez, a psicanálise nos auxilia a compreender os mecanismos psíquicos
envolvidos nesse processo patológico.
Freud, em seu trabalho: “O Chiste e sua Relação com o Inconsciente” deu
os primeiros passos da psicanálise no estudo da dependência química. Ele
relacionou a drogadição com a satisfação de necessidades infantis primárias. Postulou
que a origem das drogadições está na fase oral do desenvolvimento, do
nascimento até aproximadamente 2 anos de vida. Assim, a toxicomania pode ser
interpretada como uma fixação oral. A maior contribuição de Freud, nesse caso,
foi descrever a dinâmica da oralidade que inclui aspectos como a intolerância a
espera na satisfação de desejos e a importância da fixação e da regressão. Em
“Luto e Melancolia” Freud afirmou que a embriaguez alcoólica pertence ao grupo
dos estados maníacos na medida em que se produz estados eufóricos e esses, por
sua vez, asseguram que algo não apareça na consciência. “Aquilo que o ego
dominou e aquilo sobre o qual está triunfando permanecem ocultos”.
Segundo Silveira Filho, no livro “Drogas: uma Compreensão Psicodinâmica
das Farmacodependências”, vários outros psicanalistas começaram a estudar a
toxicomania partindo das primeiras prerrogativas de Freud. Pierre Clark estudou
a relação entre o alcoolismo e a depressão. Kielholz descreveu a toxicomania
como uma neurose narcísica relacionada à psicose maníaco-depressiva. Rado diz
que a função da droga é anestesiar o sofrimento do adicto em
decorrência de suas características depressivas e maníacas e associou a
toxicomania à liberação de impulsos destrutivos. Para Simmel a droga atua
neutralizando o superego, deixando o ego livre para reencontrar a autoestima
perdida por meio de um processo regressivo que vai fazendo do adicto uma
criança cada vez mais narcisista, que organiza a sua atividade consciente
obedecendo, quase que exclusivamente, ao princípio do prazer infantil. Rosenfeld
acredita que o adicto, por suas fragilidades, tenta fugir dos estados
depressivos que o ameaçam recorrendo à droga com o objetivo de produzir os
estados maníacos.
Para Rosenfeld, em “Os Estados Psicóticos”, abordando a teoria Melanie
Klein, diz que o fenômeno da toxicomania não se deve apenas à regressão oral do
toxicômano (como sugeriu Freud), mas também a uma excessiva divisão do seu ego
e seus objetos internos, a qual produziria uma extrema fragilidade egóica.
Segundo ele, o toxicômano estaria fixado na posição esquizo-paranóide, embora tenha
atingido parcialmente a posição depressiva, na qual dificilmente poderia
tolerar o seu ingresso total. Com a droga, justamente, o que ele tenta é evitar
cair na posição depressiva porque representa a incorporação dos seus aspectos
dissociados. A possibilidade desta incorporação implicará para o toxicômano na
desintegração total de seu ego, ou seja, a psicose. O toxicômano encontra na
droga um caminho quimicamente efetivo para superar sua fragilidade egóica e
assim, supostamente, evitar sua desintegração psicótica. Com isso, a droga
passa a ser um objeto idealizado que irá neutralizar a ansiedade paranóide que
provém da ameaça constante do núcleo psicótico. A droga entra com a finalidade
de conter a parte psicótica da personalidade do adicto, mantendo uma
estruturação, mesmo que frágil. Em muitos casos, essa estruturação não consegue
se manter, pois quanto mais cindida está a personalidade do indivíduo, maior é
o risco de a droga desencadear um surto psicótico. É possível perceber a
utilização de mecanismos de defesa primitivos próprios da posição
esquizo-paranóide, tais como: identificação projetiva, negação, idealização,
cisão e pensamento onipotente.
Utilizando como referência a teoria de Winnicott, quando ele escreve: “O
ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento
emocional” o desenvolvimento emocional do dependente químico, ocorreram falhas
ambientais em um estágio precoce, especificamente na passagem da fase de
dependência absoluta para a fase de dependência relativa, as quais
impossibilitaram o desenvolvimento adequado. A fase de dependência
absoluta ocorre após o nascimento. É o momento em que o bebê é totalmente
dependente da mãe ou do cuidador, aquele que exerce função materna. Ele ainda
não é capaz de perceber que seu corpo é separado do corpo de sua mãe, já que
são pessoas diferentes. Nessa fase, a mãe deve adaptar-se da forma mais
completa possível às necessidades do bebê. Assim, a mãe possibilita que o bebê
viva as necessárias experiências de onipotência. Por exemplo, se o bebê tem
fome, a mãe oferece o seio para alimentá-lo. Com isso, o bebê vive a ilusão de
que foi ele quem criou o seio, que ele cria a realidade. Essas experiências de
ilusão, de ser o criador do mundo, são muito importantes para um
desenvolvimento saudável. Com o desenvolvimento, é natural que o bebê, aos
poucos, viva a experiência de separação da mãe; que possa ir percebendo que ele
e a mãe são pessoas separadas física e psicologicamente. É a fase de
dependência relativa, que se desenvolve a partir dos cinco ou seis meses de
idade. A mãe suficientemente boa, vai inserindo o princípio de realidade,
desiludindo o bebê gradativamente. As repetidas experiências de ilusão
possibilitaram o surgimento de uma área intermediária de experiência entre a
realidade subjetivamente percebida e a realidade objetivamente percebida
denominada espaço potencial. É uma área intermediária entre a ilusão e a
realidade. É aqui que os objetos e fenômenos transicionais têm o seu lugar e
são esses que muito ajudam o bebê na elaboração da separação com relação à mãe.
Os objetos transicionais são objetos eleitos pelo bebê, como ursinhos,
fraldinhas, a ponta do cobertor. O
objeto transicional representa, ao mesmo tempo, a realidade interna e externa e
oferecem conforto ao bebê. Na medida em que a criança vai se desenvolvendo, o
objeto transicional vai perdendo seu significado e é deixado de lado, podendo
ser resgatado em alguns momentos difíceis, que exijam maior proteção. Os
objetos transicionais não são nem puramente imaginação, nem puramente
realidade. Representam a entrada no mundo simbólico. O objeto existe na
realidade, mas seu significado é simbólico. No caso da dependência química, a
patologia se instala na medida em que há a cronificação do objeto transicional,
isto é, quando a relação com o objeto persiste de modo exclusivo e prolongado.
Dessa forma, o objeto não serve para elaborar a ausência materna e sim para
negá-la. O uso cronificado implica a ilusão de que o objeto é a mãe. Isso
ocorre, geralmente, quando há repetidas falhas relacionadas ao cuidado materno,
especialmente nesse caso, na apresentação dos objetos ao bebê na fase de
dependência relativa. O contato com os objetos passa a ser mais importante do
que o contato com as pessoas, principalmente no que se refere ao apaziguamento
de angústias. Com isso, instala-se uma tendência a buscar objetos concretos
para aplacar o sentimento de vazio, angústia e solidão. Assim, as substâncias
psicoativas são fortes candidatas a exercer esse papel.
Atender um indivíduo com diganóstico de dependência química não é uma
tarefa fácil. Experimentamos sentimentos intensos, devido a ampla utilização de
mecanismos de defesa, transferência e a fragilidade da abstinência. Trabalhar
com dependência química envolve desenvolver tolerância à frustração, ao mesmo
tempo fé e esperança da possibilidade de uma mudança de vida. Munidos de teorias
psicanalíticas e de capacidade de continência é possível oferecer tratamento
digno ao dependente químico. É importante ressaltar a necessidade de
atendimento interdisciplinar, profissionais capacitados, grupo de apoio,
reinserção social, associados ao tratamento psicológico é possível produzir
resultados positivos.
Micheli Krayevski Eckel
Psicóloga CRP 12/08587
(47) 99193-6553
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