terça-feira, 31 de agosto de 2021

Prevenção à Condutas Antissociais na Primeira Infância

É sabido o quanto acontecimentos na infância influenciam na caracterização de nossa personalidade. Fatos traumáticos, violência familiar, bullying escolar, entre outros, acabam por desencadear comportamentos disruptivos. Esses comportamentos que por muitas vezes passam a ser punidos e vem junto um discurso moralista por parte dos adultos ao seu entorno, mas na realidade não passam de um grito de socorro! É um sinalizador de que há algo falho emocionalmente nessa criança e que ela precisa de um ambiente suficientemente bom pra lhe dar suporte.

Como trabalho com dependência química, por inúmeras vezes as escolas, empresas e outras instituições me chamam para fazer prevenção ao uso de drogas, mas isso não é possível. Não existe palestra no mundo que vá fazer alguém não vir a desenvolver a desvinça e a dependência química. A ação que funciona seria habilitar as famílias, em especial as mães, a fornecerem um ambiente saudável para o bebê desde o seu nascimento.

Há mães que, por algum motivo, não cumprem satisfatoriamente as funções de uma mãe suficientemente boa. Realizam uma maternagem deficiente, que pode conduzir ao surgimento de um sintoma ao longo do processo de amadurecimento. Embora a preocupação materna primária seja um estado psicológico naturalmente desenvolvido com a vinda de um bebê, existem mulheres que resistem em assumir esse papel. Dedicada a outras atividades, algumas mulheres não conseguem e não permitem uma identificação, uma ligação com seu bebê. Muitas irão realizar uma maternagem rígida e guiada por regras racionalmente estabe­lecidas. Vindas de livros sobre educação, algum site de conselhos ou mesmo o que uma amiga lhe ensinou. Assim, possivelmente irá conseguir prover para o seu bebê alguns cuidados básicos, mas essa mãe não será capaz de desenvolver uma comunicação profunda e significativa com seu filho. O bebê não terá suas demandas identificadas e atendidas, pois a mãe que age mecanicamente, não pensa nas necessidades do bebê, mas naquilo que precisa ser feito, como um protocolo determinado por ela mesma, que envolve basicamente alimentação e higiene.

Certamente haverá déficit no amadurecimento quando existir falhas no processo de desenvolvimento da criança. O déficit está vinculado diretamente ao momento em que as falhas ocorreram na linha de evolução, que parte do estágio de depen­dência absoluta, passando pela dependência relativa e rumo à independência relativa.

Alguns sintomas podem estar relacionados com falhas no holding (que é o cuidado), no handling (que é o manejo, a manipulação) e também na apresentação de objetos. As falhas em estágios primitivos do desenvolvimento contribuem para patologias graves. Nos estágios posteriores as patologias serão cada vez menos graves, em função do amadurecimento do ego já acontecido.

No estágio de dependência absoluta, nos primeiros meses de vida, uma mãe e um ambiente suficientemente bom previne o desenvolvimento de uma deficiência mental não-orgânica, do autismo ou da esquizofrenia.

No estágio de dependência relativa, que ocorre a partir de uns 6 meses de vida, ou quando o bebe for capaz de adotar um objeto transicional (aquele paninho ou brinquedo estimação), existe ali uma pessoa que pode ser traumatizada e, portanto, uma falha neste período pode acarretar tendências antissociais e distúrbios afetivos.

Já a independência relativa, na qual a criança tende a apresentar a capacidade de cuidar de si mesma a falha ambiental não será necessariamente prejudicial. Devido ao nível de amadurecimento do ego já estruturado.

Um ambiente propício para a maturação e desenvolvimento de uma pessoa emocionalmente saudável deve conter alguns aspectos que são relevantes para apresentar uma condição de desenvolvimento. A principal característica desse ambiente é uma funcionalidade, ou seja, na estruturação é uma família que auxilia seus membros a serem mais funcionais – são pessoas que aprendem, crescem, são pessoas com responsabilidade e autonomia.

Pais ou cuidadores suficientemente bons são aqueles que cumprem suas funções básicas de criação e desenvolvimento. São de uma forma firme e flexível, adaptada às circunstâncias e aos fatos de cada momento e que ajuda a todos a estarem sempre num processo de tomada de consciência, de aprendizagem e de crescimento.

Uma forma de avaliar o ambiente familiar é verificar se estão desenvolvendo no seu dia a dia os aprendizados que são necessários para a criação de pessoas funcionais e cada vez mais rumo a independência e autonomia.

Algumas dessas aprendizagens são ligadas a segurança oferecida através de limites claros. Afinal, todos os membros da família precisam de limites, os bebês e crianças pequenas ainda mais. Os limites começam a ser definidos logo no nascimento, onde se oferece o colo, o seio e o espaço que o bebe irá utilizar. E seguem por toda a vida familiar, com as tarefas, os horários, rotinas, valores familiares. Isso implica em direitos e deveres, regras, orientação, contratos e muitos outros itens que darão à criança a certeza de ser amada, cuidada e orientada. A falta de limites claros gera na criança (e nos adultos também) a sensação de estar à deriva, de não ter com quem contar, de insegurança e desamor.

Só quando há segurança no ambiente que o bebê pode utilizar seus impulsos, inclusive os de agressi­vidade, de forma positiva, sem criar dificuldades para o ambiente e para si. A agressividade, principalmente aquela, expressa pelo bebê em seu primeiro ano de vida e que coexiste com o amor, deve ser suportada pelo ambiente. O ambiente neces­sariamente precisa manter-se estável aos ataques sofridos.

O desenvolvimento saudável da criança necessita de um sentimento de confiança, que seja constante e capaz de recuperar-se sempre após um ataque, pois a confiança no ambiente será testada pela criança sempre que ela achar necessário. Somente com a permanência do ambiente confiável e seguro é que o bebê desenvolverá a capacidade de preocupar­-se quanto aos seus atos, redirecionar seus impulsos agressivos a impulsos construtivos.

A destrutividade pertence a todos os sujeitos, quando se perde o direito de exercê-la e de dar conta dela, paga-se um preço por isso. Perde-se a capacidade de assumir respon­sabilidades e a saúde psíquica está atrelada a esta capacidade.

Donald Winnicott, é enfático ao afirmar que a expressão da agressividade não deveria ser negada, pois só assim o ser humano poderá aproveitá-la para reparar e restituir suas ações agressivas por meio do desenvolvimento de recursos internos, de um bom ambiente interno. Para o amadu­recimento do ser é fundamental o desejo incons­ciente de querer reparar, corrigir, drenar os instintos, reconhecer a crueldade que existe em si. Este é o único caminho para sublimar estes impulsos por meio de atividades construtivas.

Quando a criança se comporta de modo antis­social, não significa necessariamente que está doente, o comportamento antissocial, na maioria das vezes, é um pedido de um controle, que precisa vir do exterior e realizado por pessoas fortes, amorosas e confiantes, que possibilitem um envolvimento afetivo. Estando sob o controle exterior a criança antissocial poderá ficar bem. Ela busca por este controle e quando não o tem, em algum momento, se sentirá ameaçada pela loucura. Irá transgredindo contra a sua família ou sociedade com o objetivo de restituir o controle advindo do ambiente externo. Esta busca está permeada por um sentimento de esperança. Esperança de encontrar no ambiente externo aquilo que falhou no estágio da dependência relativa.

Talvez, alguns devem estar se perguntando: como se faz para transmitir um ambiente seguro para um sujeito na primeira infância? Não tem uma formula mágica, mas existe alguns itens que podem ser exercitados pelos pais que desejam prevenir a instalação de comportamentos antissociais em seus filhos e consequentemente o desenvolvimento da drogadição.

O ideal seria que o ambiente, respondesse aos atos antissociais da criança os reconhecendo, nomeando e os ajudando a administrar. Desse modo o momento de esperança pode ser correspondido. O ambiente que não responde dessa forma deixa a criança sem esperança e é novamente no ato antissocial que ela vai reencontrá-la.

É de extrema importância, em relação à tendência antissocial, que atitudes sejam tomadas no princípio do seu desenvolvimento, sejam elas no âmbito familiar ou da clínica. Torna-se cada vez mais difícil alcançar a cura para a desviança deixando o tempo passar. A criança pode torna-se cada vez mais difícil. É importante evitar que a defesa antissocial organizada se instale na conduta do sujeito, pois isso resultaria na delinquência. Na delin­quência estão acrescidos os ganhos secundários dos atos e isto torna ainda mais difícil a possibilidade de intervenções que levem à cura. Além disso, as reações sociais, frente aos atos delinquentes, intensificam-se tornando a situação ainda mais difícil.

Para que os casos de tendência antissocial não evoluam para a delinquência é fundamental uma atitude vinculada a cuidados básicos com o objetivo de prevenir a manifestação da própria tendência antissocial, uma vez que pais e responsáveis sejam orientados e informados sobre a relevância das suas funções e papéis para o desenvolvimento saudável de seus filhos. Ele precisam entender que diante da não realização de ações ambientais suficientes para o amadureci­mento emocional, um comportamento antissocial pode se apresentar como reação à deprivação.

Assim, os limites claros, como citei anteriormente, são tão importantes quanto as trocas afetivas, ou seja, saber conectar com seus sentimentos e sensações, saber expressá-los, saber ser continente do afeto e dos sentimentos dos outros. Isso tanto dos sentimentos ditos positivos (amor, carinho, aconchego, cuidado) como também dos chamados negativos (raiva, medo, mágoa, tristeza). Todos os sentimentos devem ser validados e ajudar as crianças e expressa-los e administrá-los.

É relevante também nesse processo que o ambiente suporte no desenvolvimento da auto estima, que consiste na certeza de que ele tem a capacidade no seu fazer. É um processo de descoberta e de treinamento de suas competências. É necessário aprender a lidar com as diferenças – de opiniões, de características, de habilidades – e principalmente com a valorização de cada um, mesmo sendo diferente. É aqui que se aprende a ser capaz de lidar com solidão, suportar a rejeição e os obstáculos que a vida irá impor. A auto estima é necessária como um suporte para as futuras frustrações.

O ambiente precisa também permitir o desenvolvimento da Autonomia. Que é simplesmente adequar o que cada um pode fazer sozinho, o que precisa de supervisão ou o que a criança não tem ainda idade, habilidade ou competência para fazê-lo. Importante destacar o ‘ainda’, pois em um processo evolutivo, ele chegará a se desenvolver para tal atividade. E um adulto jamais deve fazer por uma criança aquilo que ela dá conta de fazer sozinha. Se isso acontecer, estará aleijando seu desenvolvimento motor e emocional. É preciso permitir que faça e que explore seus limites. As tarefas devem ser simples num primeiro momento, mas nos sinais de  responsabilidade deve ser ampliado esse limite. O que irá oportunizar o processo de independência.

Ninguém no mundo nasce sabendo oferecer um ambiente saudável para seus filhos, mas é preciso maturação e suporte emocional para que possamos através da conexão afetiva nos ligarmos ao instinto e assim disponibilizar desenvolvimento para que as crianças caminhem rumo a independência.

 

Micheli Krayevski Eckel - Psicóloga




 

 

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